quarta-feira, 9 de outubro de 2024

não mono

Acabo de ler o livro da Geni Núñez, Descolonizando Afetos. Não vou me atrever a fazer resenha do livro, porque sei que alguém já fez isso muito melhor que eu, pede pro Google que ele te conta. Mas eu precisava começar com essa informação, porque essa leitura me trouxe a coragem para falar de algo que é parte fundamental de quem eu sou, e curiosamente fica na sombra, porque... "não se fala sobre isso". Mesmo eu, que falo abertamente sobre tanta coisa, que tenho tanta coragem pra cutucar tabus, que valorizo tanto a autenticidade, o "ser quem se é".

Eu faço críticas abertas e profundas aos modos de vida da cultura dominante: capitalismo, trabalho, escola, religião, produção, medicina, meio ambiente, relações de classe, gênero, raça - tudo isso já passou por aqui e é vivo no meu discurso e na minha forma de ser. Temas vivos. Nada conclusivo nem concluído, porque conclusões não são vida, são morte. Então eu já tenho essa prática de questionar os modelos prontos, de chacoalhar as fórmulas. E nos meus estudos venho constatando que a Vida está na diversidade; que sistemas vivos são complexos e que tentar reduzi-los a zonas de monocultura, além de ser uma enorme ilusão, é causa de muito sofrimento, porque no longo prazo a ilusão se desfaz, mas até chegar lá, haja sofrimento.

Pois é, se você me conhece, até aqui sem grandes novidades.

A novidade que chega agora é provavelmente a cereja do bolo, a peça que faltava, o arremate da costura: monogamia.

Óbvio né? Não tem como ter uma prática coerente de questionamento da cultura dominante e não falar sobre monogamia. E é algo que eu faço desde a mais tenra idade. Nem lembro quando foi que conceitos de amor livre chegaram até mim - provavelmente algum livro do Osho na adolescência! É um assunto que não cheguei a ter com o meu primeiro namorado, uma relação breve e intensa, mas que emplaquei quase que imediatamente quando comecei meu segundo namoro - com a pessoa que se revelou ser um grande amor na minha vida, com quem eu casei, com quem tenho dois filhos e com quem divido a vida há 23 anos.

Mas mesmo assim é um assunto que eu não me permitia trazer a público. Por medo... medo de ser incompreendida, medo de magoar quem gosta de mim, medo de afastar pessoas, medo, medo, medo. Eu evitei muitas armadilhas da cultura dominante, e me soltei de tantas outras, mas essa me prendeu e ainda me prendia até dia desses. E é assim que a monocultura faz, ela prende pelo medo. A boa notícia é que basta encarar o medo que ele some, as amarras se rompem e a liberdade se abre. Simples assim (contém ironia... sabemos que encarar medos não é simples e é justamente isso que estou fazendo agora).

Medo de ser incompreendida: ora, se não tenho a chance de me expressar, como vou querer que me compreendam? E se não me compreendem, seria a compreensão um requisito para o amor?

Medo de magoar quem gosta de mim: se algum modo de ser meu magoa alguém, há algo de equivocado nessa relação. Eu não sou assim com o objetivo de magoar ninguém! Eu sou o que sou e é isso

Medo de afastar pessoas: haja coragem para dizer isso, maaaaas... se alguém se afasta de mim por se incomodar com algum modo de ser meu, melhor que se afaste mesmo. Digo isso sem mágoa nem arrogância. É mais saudável, para ambos. Que nenhum compromisso se sobreponha a essa clareza. Nem familiar, nem profissional, nem hierárquico, nada!

Só que estando eu em um relacionamento oficial, em uma sociedade monogâmica, esses medos tinham muito a ver também com a pessoa que estabelece comigo essa parceria formal chamada namoro, depois casamento. Eu me preocupava sobre como o meu posicionamento poderia afeta-lo, afetar as relações dele (família, trabalho). Eu me preocupava sobre como preconceitos e julgamentos sobre mim poderiam dificultar algumas coisas pra ele. Ficar na sombra era um esforço não só para me proteger, mas também para protege-lo. Não me custa dizer que esse tipo de preocupação é típico do ser-mulher em uma relação hétero.

Pelo menos entre nós a conversa sempre foi aberta e fluida, com os diferentes graus de maturidade que a vida nos confere em cada fase do nosso desenvolvimento, mas sempre esteve ali. Essa é inclusive a parte do ativismo e do posicionamento político que eu não conseguiria deixar de lado, mas por muito tempo eu assumi a postura de que ninguém tinha que ficar sabendo dos nossos acordos e desacordos. Eu achava que não precisava dar satisfação pra ninguém além do companheiro e que uma boa dose de discrição não faria mal. Depois fui percebendo que essa discrição deixava na sombra partes importantes de mim e que o que estava na sombra impactava na minha espontaneidade, na minha energia, na minha criação, enfim, se eu não posso ser eu por inteira, se eu preciso esconder algo que faz parte de mim, então eu não sou eu. E isso desvitaliza.

Esse mecanismo não tem a ver com discrição ou indiscrição; não tem a ver com a necessidade ou não de dar satisfações e explicações. Isso tem a ver com guardar segredo. E segredos corroem.

Pois então, respeitando a minha privacidade, digo que não sou, nem nunca fui, monogâmica.

Digo também que por mais que pareça que eu faça parte de um "casal-Doriana", as coisas não são bem assim. Tenho sim um casamento longevo e lindo, mas não suporto pensar que essa imagem seja atrelada à monogamia compulsória, aos votos de exclusividade e "até que a morte os separe". Como muito bem coloca a Geni (esqueci de grifar e não conseguirei trazer as aspas, mas a ideia geral é simples e me atrevo a citar sem referenciar), esse casamento lindo não existe por causa da monogamia, mas apesar da monogamia.

Esse casamento lindo não é algo dado e resolvido. Esse casamento lindo é um organismo vivo. Dia sim, dia não eu escolho estar casada e continuar casada. E pode ser que amanhã ou depois eu escolha não estar mais casada; pode ser que amanhã ou depois eu saiba que a pessoa que está comigo nessa parceria escolheu não estar mais. E isso não seria indicador de fracasso. Indicador de fracasso pra mim é minguar a vida pra sustentar estruturas mortas. Esse casamento é lindo porque ele é vivo, porque ele respira, porque ele adoece e se restabelece, porque ele cria anticorpos, porque ele pulsa, porque ele se move. E se um dia ele morrer - porque tudo que é vivo, morre - isso não será sinal de fracasso, simplesmente porque morrer não é fracassar. Morrer é natural, faz parte da vida.

E o que trazer isso à tona muda? Não sei... realmente não sei. O que sinto aqui dentro é um alívio. Partes importantes de mim estão vendo o sol pela primeira vez e esse encontro é pura magia. É algo que eu precisava fazer por mim. Não tenho pretensão - nem medo - de que me afirmar não-monogâmica mude nada nas minhas relações. Mas desconfio que ao me permitir ser quem eu sou eu possa dar passos mais firmes na direção do reflorestamento dos afetos, na construção dessa ecologia fértil, diversa, chuvosa e ensolarada.

domingo, 19 de maio de 2024

... eu também vou reclamar

Vira e mexe vejo recomendações de "parar de reclamar" pra ter uma vida feliz, saudável, próspera, bem sucedida. E eu concordo que a "energia" da reclamação, dos resmungos, vai na contramão desses ideais. Mas algo que pouca gente conta é que não dá pra ser feliz, saudável, próspero e bem sucedido 100% do tempo. E o mais importante: nos momentos em que não estamos vivendo a glória da plenitude, não significa que falhamos, não significa que tudo foi por água abaixo. Significa simplesmente que está tudo caminhando NORMALMENTE na sua vida, porque a vida é assim, é feita de altos e baixos, de ciclos que se sobrepõem, de misturas que vão além das dualidades e que incluem toda uma gama de nuances.

Estar infeliz é normal; adoecer é normal; ter prejuízos é normal; fracassar é normal. O anormal, o preocupante, pode estar relacionado com frequência e intensidade, com situações crônicas. E o ponto de alerta aqui é que nós, seres humanos, somos bastante adaptáveis e isso pode ser muito bom pra encarar situações extremas, mas é perigoso, porque a gente se acostuma. O ser humano se acostuma a viver na infelicidade, na doença, nos prejuízos, nos fracassos e vai passando a achar que "a vida é isso". Então vem as recomendações de buscar uma vida mais feliz, mais saudável, mais próspera, mais bem sucedida.

Aí quem consegue comprar a ideia, passa a revisar hábitos, indicadores, até valores e implementa mudanças na vida, tornando-se mais feliz, mais saudável, mais próspero, mais bem sucedido. E vem de novo o perigo de se acostumar! A gente se acostuma com a "escalada" e com o modo de ser que busca esses ideais, e se não aparecer ninguém pra dizer "agora tá bom, descansa um pouco, reavalia a trajetória", quando nos damos conta, a busca pela felicidade nos torna infelizes, a busca pela saúde nos adoece, a busca pela prosperidade nos quebra, enfim, a busca em ser bem sucedido fracassa.

E nesse contexto eu venho aqui trazer uma reflexão sobre o ato de reclamar.

Reclamar é, basicamente, pedir empatia. Quando reclamo quero ouvir de volta: "poxa, verdade! Que chato né?". Quando reclamo, a última coisa que quero ouvir é "ah, para com isso, essa atitude não vai resolver as coisas" ou ainda pior: "ah, você tá chorando de barriga cheia!" e todas as variações, que incluem minimizar meu incômodo me contando de situações "piores que a minha".

Reclamar é expressar uma insatisfação NOR-MAL, porque é impossível estar satisfeito o tempo todo (e quem aparenta estar não me convence, porque aposto que lá no fundo, ou em outro cenário, tá cheio de insatisfação).

Isso quer dizer que você é obrigado a oferecer empatia toda vez que uma pessoa vier reclamar pra você? Claro que não.

O que você pode fazer é começar perguntando-se: "estou disposto a oferecer empatia a essa pessoa agora?". Se a resposta for sim, entre na brincadeira, aproveite a oportunidade para exercitar seu corpo empático. Se a resposta for não, busque uma forma de informar a pessoa que você não está com essa disposição (o que é um ótimo exercício também!). E não espere acertar de primeira... é uma musculação da comunicação. Se você for erguer cargas muito pesadas no começo vai se arrebentar.

E quando quem está reclamando é você? Permita-se reclamar. Mas busque observar a atitude do seu interlocutor. Se for uma atitude de empatia, aproveite pra receber esse presente e, como diz a boa etiqueta, ao final agradeça. Quando oferecemos empatia e somos reconhecidos por isso, é algo que nos nutre, é algo que fortalece o corpo empático e vai permitindo que possamos oferecer mais e mais.

Se, por outro lado, a escuta não for empática, infelizmente será algo a ser acrescentado à sua lista de reclamações... e não adianta insistir com essa pessoa que não quer ou não pode te oferecer empatia nesse momento. A você, que precisa reclamar, sinto muito... não será dessa vez. Sei que muitas vezes mesmo assim a gente reclama e a atitude não-empática do interlocutor só piora a situação e ao final da conversa provavelmente nosso estado de espírito não estará do jeito que gostaríamos. Se houver consciência, logo veremos que é um caminho que não vale a pena.

Consciência. Também é um músculo a ser exercitado.

A consciência nos protege não de "não reclamar", mas de identificar quando e com quem podemos reclamar. Porque sempre teremos reclamações. Faz parte da vida.


PS - recomendo ouvir a música do Raul Seixas, que inspirou o título do texto!


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Elis e Tom - o documentário

 Assisti ontem e ainda estou digerindo... mas que decepção...

Pra uma crítica mais técnica recomendo esse texto, cujo autor desconheço e não estou com tempo pra pesquisar, mas concordo com grande parte do que ele aponta.

Nesse âmbito da parte mais "superficial", a sensação é que o documentário não entrega o que promete. Por exemplo, não entendo por que deixaram músicas do álbum de fora e incluíram outras, de outros contextos. Ok, pra mim nunca é demais ouvir Elis (nunca!) e mesmo Tom, mas o documentário perdeu o foco, e quando perde-se o foco, perde-se a alma.

Sobre perder o foco, as falas enveredam por especulações levianas e extremamente desrespeitosas sobre a vida da Elis. E aí a gente entra num aspecto menos "técnico", menos superficial e vamos navegar pelas entrelinhas da narrativa apresentada.

Pra começo de conversa: um bando de homem.

Aparece uma única mulher nas entrevistas, filha do Tom Jobim, que tinha 16 anos quando o álbum foi gravado e contribui com um olhar infantilizado ("eu não lembro direito, perguntei pra minha mãe...." Ah, gente, faça-me o favor!).

Quanto aos bastidores criação, direção, produção, fiz questão de ficar até o final pra ver os créditos e vi dois ou três nomes de mulher, na produção executiva, controladoria e alguma outra tarefa operacional. Aff...... mulheres agilizando o rolê pros homens pavonearem e colherem os louros. E pior: tecerem conjecturas sobre a vida de uma mulher. E ainda pior: de uma mulher que nem está mais aqui pra falar por si e expor seu ponto de vista (como se isso fosse permitido. Não seria, ainda não é, e essa constatação é algo que me derruba, me entristece, me revolta! Mas, Elis, não foi em vão. Eu não vou ficar calada diante de tamanho desrespeito. Não por você, que já foi, está em outra, mas por nós que seguimos essa linhagem de mulheres que lutam co-ti-di-a-na-men-te pra termos voz e espaço para sermos o que somos).

Interessante notar que se o documentário tivesse como resultado o que se propôs a fazer, as questões de gênero poderiam ter passado sem grandes questionamentos. Poderia ser um filme que mostrasse os bastidores do álbum, que retratasse a genialidade de cada um e que fosse lindo. Pronto, seria lindo. Teria espaço pra mostrar as incompatibilidades, como um tempero de cada genialidade geniosa. Seria lindo.

Mas não foi esse o caminho escolhido. Fico com a sensação de que o roteiro foi bem intencional no objetivo de causar polêmica e fazer fofoca. E de ser apelativo também, incorrendo em incoerências absolutamente injustificáveis, como quando mostram Elis Regina no caixão (?!), abordando de forma  sensacionalista a sua morte, incluindo o fato na parte do documentário destinada a retratar a Elis ANTES da gravação do álbum. Como assim?! Pois é, como assim?!

Ah, e foi mencionada a morte de Tom Jobim? Nem de longe... ele segue imortal.

É brutal a diferença com que tratam as imagens de cada um deles.

Tom Jobin fica num lugar quase que inacessível a qualquer julgamento, acima de qualquer possibilidade de se questionar suas escolhas, seus posicionamentos - por mais que tenham colocado ênfase na "supremacia" dele em relação ao César Camargo Mariano. No fim, a sensação que fica é "tá tudo certo, é isso mesmo, Tom Jobin tinha todo direito de querer mandar na porra toda, e Mariano foi um gentleman, demonstrou humildade de discípulo. Aplausos para os dois".

Já Elis é retratada como instável, imatura, insegura, vaidosa - uma vaidade totalmente diferente da do Tom, porque a ele é dado o direito de ser vaidoso, mas a ela, não. A vaidade no homem é resultado de seus méritos; a vaidade na mulher é capricho.

E é claro que fazem isso de forma dissimulada. Essa é uma das artimanhas do machismo estrutural. Eles jamais afirmariam de forma declarada que a Elis era instável, imatura, insegura e vaidosa, com toda a carga pejorativa de cada termo. Eles fazem isso à partir de uma superioridade masculina, aquela mesma que calmamente nos chama de loucas quando berramos (as que conseguem) em resposta a toda espécie de atrocidade que eles cometem contra nós.

Eu teria tanta coisa mais pra dizer sobre esse filme, sobre a forma com que trataram a Elis no documentário (que pode ser inclusive só uma janelinha de como a trataram em vida).... sem contar toda a parte das projeções das minhas dores de mulher, mãe e artista (?! - sobre meu lado artista a gente conversa outra hora...). Impossível não pensar como estaria sendo pra ela estar naquele contexto, sendo mãe de duas crianças pequenas e com um marido que era ao mesmo tempo seu "chefe" (ou vai me dizer que o arranjador e pianista, sendo marido, não ocuparia algum cargo de chefia perante ela?!) e que estava com seu orgulho sendo profundamente e constantemente ferido pelo macho alfa do rolê. Não vou cair na armadilha de supor o que ela sentia com relação a cada um desses componentes da complexa fórmula "Elis Regina em Elis e Tom", mas que não estaria sendo fácil, ah, isso não estava mesmo!

Enfim.... tenho louça pra lavar, almoço pra fazer, enfeites de bazar da escola pra bordar, uma aula pra preparar e uma viagem pra encaminhar. O tempo me escorre da mesma forma que o sangue entre minhas pernas. Esses são alguns dos - muitos - ônus de ser mulher. A gente não tem um instante de paz. Urge estarmos, homens e mulheres, cientes disso.

>> em 2012 eu escrevi um texto aqui inspirado por uma música do Elis & Tom (que não aparece no documentário......). Dá uma espiada lá... é bonito :)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A celebração do Natal e os padrões repetitivos

 

Essa imagem e o texto que a acompanha, postados na conta do Al Janiah (restaurante palestino e centro cultural) no Instagram (@aljaniah_oficial), foram as "gotas d´água" pra que eu formulasse e publicasse a reflexão que trago. Recomendo que você leia na íntegra o texto que eles postaram, mas basicamente nos relembra alguns fatos pouco enaltecidos na narrativa mais ampla sobre a vida de Jesus.

Essa família tão celebrada há milênios era composta por uma mãe solteira e um pai adotivo; pobres e refugiados; periféricos.

Jesus, o grande homenageado, foi um rebelde, contestador, que enfrentava o poder dominante falando sobre igualdade, justiça, amor, perdão...

2022 anos se passaram e pessoas como eles seguem sendo marginalizadas, perseguidas, assassinadas, invisibilizadas. Estamos presos nessa história.

Presos com requintes de crueldade, pois a dinâmica opressora usa de armas perversas, capturando narrativas e retorcendo-as até que fiquem palatáveis - e consumíveis. Vejam a festa que se formou em torno desse evento! E aqui não vou entrar no papinho água com açúcar de "o espírito natalino se perdeu, agora o que importa é só o consumo". Porque ao colocar as coisas assim podemos até nos esforçar por fazer diferente no âmbito individual, mas acabamos nos acomodando enquanto coletivo, afinal...


"é uma força muito maior, não temos como mudá-la"


"pra minha família é importante, então abro mão dos meus questionamentos e faço essa concessão por eles"


"eu não ligo pro Natal"


"eu me revolto com o Natal"


E assim a tradição segue... com meia dúzia de ovelhas negra, um outro tanto de indiferentes, e a grande massa dando continuidade a uma história que por algum motivo segue sendo necessária.

E que história é essa? A história da família pobre, marginalizada, perseguida; a história do rebelde que contesta o poder com palavras de justiça e amor, e é cruelmente assassinado. É essa a história que seguimos reproduzindo por milênios. A historinha paralela, com anjinhos, pinheirinhos, luzes e presentes é apenas uma distração.

Tiremos então essa distração. Observemos o que está por trás.

Ao fazer isso eu vejo um padrão repetitivo. Um ciclo que muda de cara, mas não muda de enredo.

E o que são esses padrões repetitivos? Você, que é uma pessoa minimamente desperta pro seu desenvolvimento (se não fosse, não estaria aqui...), certamente já se deparou com esse tipo de padrão na sua vida. Seja na sua história individual (a repetição de hábitos nocivos, que viram vício e prisão) ou na história daqueles que vieram antes de você (a repetição de comportamentos herdados de pais, avós e cia, que quando paramos pra analisar não fazem mais sentido, mas misteriosamente seguimos repetindo).

Pois bem, se algo segue sendo repetido isso se dá basicamente a dois fatores:

1) o aprendizado necessário ainda não foi alcançado, e assim seguimos "repetindo de ano", até aprender a matéria, passar na prova e poder mudar de fase

2) estamos rodando em automático, refazendo passos por força do hábito, sem ter consciência sobre eles - ou seja: presos em distrações

Experimente aplicar esses caminhos pros seus padrões repetitivos.

Reconhecê-los já é uma grande coisa! E isso nem sempre é possível sozinho (alô, terapia!).

Então é mais ou menos assim:

- você identifica um padrão, uma repetição

- avalia se te faz bem ou não (sim, existem bons padrões também, rs..)

- caso não faça, você faz a escolha de sair dele

- se for apenas uma questão de que você estava "rodando em automático", pronto, resolvido! Porque a luz da consciência será suficiente. Agora que você sabe, agora que você olha e enxerga, ouve e escuta, é capaz de traçar novos passos. O caminho trilhado e batido estará ali por um tempo, oferecendo uma tentação de andar por um caminho aparentemente mais fácil e recair nos velhos hábitos. Mas você está consciente e pode escolher não trilhá-lo.

- mas se for uma questão de que o aprendizado ainda não foi alcançado, então pode ser que dê um pouquinho mais de trabalho... afinal, existe uma tarefa a ser feita! Então arregace as mangas!!! Você já decidiu que esse padrão te faz mal; você já decidiu que não o quer mais em sua vida! Larga mão de ser frouxo e faz o que precisa ser feito! Vai atrás de ajuda, se mexe, sai do lugar, chacoalha essa poeira. Não é fácil, ninguém disse que seria... mas quais são suas outras escolhas?! Encare a realidade e pare de se distrair  com bobagens (de novo as distrações, tá vendo? Elimine-as e terá seu caminho claro). O golpe tá aí, cai quem quer...

E a humanidade vem caindo nesse golpe... no golpe de romantizar a pobreza e a opressão; no golpe de enaltecer a meia dúzia que consegue se safar e fechar os olhos pra multidão massacrada; no golpe de "seja feliz e grato pelo que você tem, celebre com os seus, você merece". Merece o que?! Merece viver nesse mundo cheio de sofrimento? Merece se fechar em pseudo-fortalezas como um avestruz que enfia a cabeça num buraco? Merece deixar de ir a lugares por medo de que as vítimas da opressão o façam de vítima?

Pois trago uma boa notícia: não, você não merece!

Você não merece se submeter a essa sub-vida em troca de presentes e uma mesa farta. Você é mais que isso! Você não se vende... nem por muito e nem por pouco. Você não se vende.

___


Eu estou falando pra "você", mas saiba que escrevo olhando no espelho.

Esse ano o Natal atingiu uma saturação em mim. Não cabe mais. Chega!

Em paralelo, estou vivendo uma fase de redefinir rumos da minha vida, traçar metas pro ano que começa... e vou compartilhar uma delas aqui, tornando-a pública e fazendo disso uma forma de reforçar meu comprometimento.

O Natal de 2023 vou dedicar a estar com os pobres, refugiados e marginalizados. Vou me proteger de distrações e me empenhar em algum trabalho voluntário. Talvez eu ainda precise assimilar as ideias de Jesus, pra quem sabe poder sair desse padrão e partir pra novos aprendizados...


sexta-feira, 1 de abril de 2022

Leveza e Profundidade

Se você acha que é um paradoxo,

vou te dar uma dica:

olha pra cima

e aprofunda no céu!


Aprofundar não é (só) afundar

Aprofundar com leveza é flutuar livremente

Nas águas e nos ares


Leveza é ar e água

Mas parece que a gente aprende que leveza é sinônimo de superficialidade

leviano

Fico com Lenine: a leveza está na delicadeza

Observemos a leveza através da delicadeza

e aprofundaremos


A delicadeza da presença

A delicadeza da atenção

A delicadeza da disponibilidade

A delicadeza do interesse


A leveza que aprofunda é

A leveza que cria vínculos

A leveza que é livre

A leveza que é também compromissada,

Porque é atenta


A profundidade que pesa,

que puxa pra terra,

são pés pesados tropeçando nas pedras dos caminhos

As pedras do cotidiano

A lista de compras

Os boletos, o extrato, a fatura

O filho doente

A obra que atrasa

O chefe que resmunga

O empregado que falta

O carro que quebra


As pedras dos não ditos

As expectativas que não viram perguntas

As perguntas que ficam sem respostas

As respostas tortas,

- o desalinho entre o que sai e o que está dentro


Mas quem tropeça são os pés

As pedras são o que são

Pés leves tropeçam menos,

Porque flutuam, dançam

Porque tem liberdade,

saltam e até voam

aprofundando

No céu