Acabo de ler o livro da Geni Núñez, Descolonizando Afetos. Não vou me atrever a fazer resenha do livro, porque sei que alguém já fez isso muito melhor que eu, pede pro Google que ele te conta. Mas eu precisava começar com essa informação, porque essa leitura me trouxe a coragem para falar de algo que é parte fundamental de quem eu sou, e curiosamente fica na sombra, porque... "não se fala sobre isso". Mesmo eu, que falo abertamente sobre tanta coisa, que tenho tanta coragem pra cutucar tabus, que valorizo tanto a autenticidade, o "ser quem se é".
Eu faço críticas abertas e profundas aos modos de vida da cultura dominante: capitalismo, trabalho, escola, religião, produção, medicina, meio ambiente, relações de classe, gênero, raça - tudo isso já passou por aqui e é vivo no meu discurso e na minha forma de ser. Temas vivos. Nada conclusivo nem concluído, porque conclusões não são vida, são morte. Então eu já tenho essa prática de questionar os modelos prontos, de chacoalhar as fórmulas. E nos meus estudos venho constatando que a Vida está na diversidade; que sistemas vivos são complexos e que tentar reduzi-los a zonas de monocultura, além de ser uma enorme ilusão, é causa de muito sofrimento, porque no longo prazo a ilusão se desfaz, mas até chegar lá, haja sofrimento.
Pois é, se você me conhece, até aqui sem grandes novidades.
A novidade que chega agora é provavelmente a cereja do bolo, a peça que faltava, o arremate da costura: monogamia.
Óbvio né? Não tem como ter uma prática coerente de questionamento da cultura dominante e não falar sobre monogamia. E é algo que eu faço desde a mais tenra idade. Nem lembro quando foi que conceitos de amor livre chegaram até mim - provavelmente algum livro do Osho na adolescência! É um assunto que não cheguei a ter com o meu primeiro namorado, uma relação breve e intensa, mas que emplaquei quase que imediatamente quando comecei meu segundo namoro - com a pessoa que se revelou ser um grande amor na minha vida, com quem eu casei, com quem tenho dois filhos e com quem divido a vida há 23 anos.
Mas mesmo assim é um assunto que eu não me permitia trazer a público. Por medo... medo de ser incompreendida, medo de magoar quem gosta de mim, medo de afastar pessoas, medo, medo, medo. Eu evitei muitas armadilhas da cultura dominante, e me soltei de tantas outras, mas essa me prendeu e ainda me prendia até dia desses. E é assim que a monocultura faz, ela prende pelo medo. A boa notícia é que basta encarar o medo que ele some, as amarras se rompem e a liberdade se abre. Simples assim (contém ironia... sabemos que encarar medos não é simples e é justamente isso que estou fazendo agora).
Medo de ser incompreendida: ora, se não tenho a chance de me expressar, como vou querer que me compreendam? E se não me compreendem, seria a compreensão um requisito para o amor?
Medo de magoar quem gosta de mim: se algum modo de ser meu magoa alguém, há algo de equivocado nessa relação. Eu não sou assim com o objetivo de magoar ninguém! Eu sou o que sou e é isso
Medo de afastar pessoas: haja coragem para dizer isso, maaaaas... se alguém se afasta de mim por se incomodar com algum modo de ser meu, melhor que se afaste mesmo. Digo isso sem mágoa nem arrogância. É mais saudável, para ambos. Que nenhum compromisso se sobreponha a essa clareza. Nem familiar, nem profissional, nem hierárquico, nada!
Só que estando eu em um relacionamento oficial, em uma sociedade monogâmica, esses medos tinham muito a ver também com a pessoa que estabelece comigo essa parceria formal chamada namoro, depois casamento. Eu me preocupava sobre como o meu posicionamento poderia afeta-lo, afetar as relações dele (família, trabalho). Eu me preocupava sobre como preconceitos e julgamentos sobre mim poderiam dificultar algumas coisas pra ele. Ficar na sombra era um esforço não só para me proteger, mas também para protege-lo. Não me custa dizer que esse tipo de preocupação é típico do ser-mulher em uma relação hétero.
Pelo menos entre nós a conversa sempre foi aberta e fluida, com os diferentes graus de maturidade que a vida nos confere em cada fase do nosso desenvolvimento, mas sempre esteve ali. Essa é inclusive a parte do ativismo e do posicionamento político que eu não conseguiria deixar de lado, mas por muito tempo eu assumi a postura de que ninguém tinha que ficar sabendo dos nossos acordos e desacordos. Eu achava que não precisava dar satisfação pra ninguém além do companheiro e que uma boa dose de discrição não faria mal. Depois fui percebendo que essa discrição deixava na sombra partes importantes de mim e que o que estava na sombra impactava na minha espontaneidade, na minha energia, na minha criação, enfim, se eu não posso ser eu por inteira, se eu preciso esconder algo que faz parte de mim, então eu não sou eu. E isso desvitaliza.
Esse mecanismo não tem a ver com discrição ou indiscrição; não tem a ver com a necessidade ou não de dar satisfações e explicações. Isso tem a ver com guardar segredo. E segredos corroem.
Pois então, respeitando a minha privacidade, digo que não sou, nem nunca fui, monogâmica.
Digo também que por mais que pareça que eu faça parte de um "casal-Doriana", as coisas não são bem assim. Tenho sim um casamento longevo e lindo, mas não suporto pensar que essa imagem seja atrelada à monogamia compulsória, aos votos de exclusividade e "até que a morte os separe". Como muito bem coloca a Geni (esqueci de grifar e não conseguirei trazer as aspas, mas a ideia geral é simples e me atrevo a citar sem referenciar), esse casamento lindo não existe por causa da monogamia, mas apesar da monogamia.
Esse casamento lindo não é algo dado e resolvido. Esse casamento lindo é um organismo vivo. Dia sim, dia não eu escolho estar casada e continuar casada. E pode ser que amanhã ou depois eu escolha não estar mais casada; pode ser que amanhã ou depois eu saiba que a pessoa que está comigo nessa parceria escolheu não estar mais. E isso não seria indicador de fracasso. Indicador de fracasso pra mim é minguar a vida pra sustentar estruturas mortas. Esse casamento é lindo porque ele é vivo, porque ele respira, porque ele adoece e se restabelece, porque ele cria anticorpos, porque ele pulsa, porque ele se move. E se um dia ele morrer - porque tudo que é vivo, morre - isso não será sinal de fracasso, simplesmente porque morrer não é fracassar. Morrer é natural, faz parte da vida.
E o que trazer isso à tona muda? Não sei... realmente não sei. O que sinto aqui dentro é um alívio. Partes importantes de mim estão vendo o sol pela primeira vez e esse encontro é pura magia. É algo que eu precisava fazer por mim. Não tenho pretensão - nem medo - de que me afirmar não-monogâmica mude nada nas minhas relações. Mas desconfio que ao me permitir ser quem eu sou eu possa dar passos mais firmes na direção do reflorestamento dos afetos, na construção dessa ecologia fértil, diversa, chuvosa e ensolarada.