segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Bolívia & Peru - Diário de Bordo: Ep. 7 - Cusco, muito mais do que um "pit stop"

Voltemos então um pouco na cronologia da viagem. Ao contrário de outras "cidades de apoio", como Uyuni para o Salar, Copacabana para a Isla del Sol e Puno para as ilhas do Lago Titicaca (como veremos à frente), Cusco não merece ficar apenas como coadjuvante.

A cidade é linda, tem praças com jardins bem cuidados e um casario muito pitoresco no centro histórico. Hotéis, restaurantes e lojinhas que atendem do hippie ao yuppie, inclusive em termos de orçamento, é claro.

Nossa hospedagem foi o Hostal Teatro Inka, que fica muito bem localizado, tem seu charme e quartos confortáveis a preços acessíveis (US$ 35,00/dia/quarto de casal). Tivemos um pequeno contratempo com a reserva feita pelo site Hostels Club e na primeira noite tivemos que ficar os quatro no mesmo quarto, mas no fim deu tudo certo.

Informação curiosa: até a volta da Trilha Inca nós não tínhamos dormido duas noites no mesmo lugar! Foram 14 noites, uma em cada lugar!!! Até que a décima quinta foi no mesmo quarto e depois já voltamos à vida cigana, pois o pessoal foi embora e eu fui para um hostel mais baratinho, já que seguiria sola.

Foi em Cusco que descobri uma bebida apaixonante: chicha morada! É um refresco feito com milho roxo e "temperado" com limão, cravo, canela, abacaxi. Delicioso, saudável e mais barato do que qualquer outra bebida. A melhor que tomei foi na pizzaria Marengo (que tem uma ótima pizza, por sinal!).

E por falar em turismo gastronômico, acompanhei meus amigos na empreitada de comer um bom ceviche. Pra começar, fomos alvo de chacota dos funcionários do Hostal, porque eles queriam comer ceviche à noite. Primeiro aprendizado sobre uma das comidas mais típicas peruanas: ceviche come-se no almoço!

Ok, no dia seguinte fomos ao restaurante Las Machitas, que fica fora do epicentro turístico da cidade e é frequentado principalmente por peruanos. Segundo eles o ceviche estava muito bom... eu não provei, é claro, pois não como nenhum tipo de carne.

Confesso que um vegetariano não tem muito o que fazer em uma cevicheria, fora acompanhar os amigos. TUDO é feito com peixes e frutos do mar... quando pedi um arroz branco com mandioca frita (surpresa boa!), já me preparei para as piadinhas do garçon, mas (outra surpresa boa) ele foi muito atencioso e me providenciou uma salada, que não estava no cardápio! Mais um ponto para o tratamento aos vegetarianos no circuito Bolívia/Peru!

Outro um lugar digno de nota no quesito turismo gastronômico é o Incanto, que fica pertinho da Plaza de Armas (Calle Santa Catalina, 135). É um restaurante grande, sofisticado e elegante. Os garçons tem um uniforme bonito e o que nos atendeu era extremamente educado e atencioso e "muy guapo" também :) A comida, divina! Comi um tralharim ao funghi que estava espetacular. A chicha morada não bateu a do Marengo, mas estava boa. A Thássia pediu uma limonada com gengibre e hortelã que estava dos sonhos! É claro que é um pouco mais caro, com pratos entre 30 e 40 soles, mas vale cada centimo!

Não fizemos muita coisa em Cusco, a não ser conhecer restaurantes, passear pelas lojas especializadas em material de camping e treking (que, confesso, me decepcionaram um pouco... não achei nada demais), passear pelas lojinhas de "artesanias", trocar dinheiro e brigar com os caixas eletrônicos! O cartão do Lelo ficou preso em um (aqui ainda tem daquelas terríveis máquinas que engolem o cartão), mas foi só um susto, pois depois de alguns minutos tentando ligar no banco e dando uns chutes na máquina (brincadeira!), ela vomitou o cartão. O PC teve problemas para sacar no Banco do Brasil e depois descobriu que só se pode sacar 100 soles por vez, com uma tarifa de quase 10%. Um abuso!!!

Na volta da Trilha Inca ainda tivemos mais um dia juntos em Cusco e eu e o Paulo Cesar fomos conhecer o Museo de Plantas Sagradas, Mágicas y Medicinales, que nos chamou a atenção em nossa primeira andada pela cidade, mas estava fechado por ser 01/01.

Para entrar paga-se 15 soles e o museu é muito bonito e bem montado (Calle Santa Teresa, 351). Há uma sala enorme só sobre a Coca, há salas também sobre o cactus San Pedro, o Ayahuasca e o Tabaco, além de exposições sobre muitas outras plantas. A visita pode ser um pouco cansativa, pois tem muita coisa para ler, mas se o assunto te interessa, vale a pena. Veja algumas anotações que fiz por lá:

"Segundo a cultura tradicional andina, uma perfeita saúde depende de dois conceitos, que tem a ver com o indivíduo e com a comunidade:
- estar bem: envolve um equilíbrio físico e emocional segundo sua idade e sexo;
- viver bem: viver de acordo e com estrito cumprimento dos princípios éticos da vida comunitária.
Para que uma pessoa esteja sã, a comunidade deve estar também."

Isso está dentro do contexto das plantas medicinais, sagradas e mágicas, que, conforme o conhecimento e aplicação dos curandeiros, ou xamãs, ajudam as pessoas a encontrarem seu equilíbrio interno e também com a comunidade.

Na sala sobre a Coca li um texto muito bonito, que reproduzo abaixo, mas em espanhol, porque o fato do substantivo "árvore" ser masculino nessa língua é importante para o contexto:

"Los árboles son los hombres y las mujeres somos la tierra y la frondosidad de los árboles depende de la fertilidad de la tierra. Y no se puede haber una tierra fértil sin la sombra de la frondosidad de los árboles. Todos somos importantes, todos somos necesários, hombres y mujeres (...). La coca es la única planta femenina. La portan solo los hombres, como una forma de complementariedad."

Conforme a visita ao museu ia avançando, fui tendo algumas reflexões sobre essas plantas mágicas e sagradas, principalmente as alucinógenas. Essas plantas são apresentadas dentro de um contexto lindo, da sabedoria dos xamãs, que "conversam" com as plantas, administrando-as de forma incisiva e para objetivos muito específicos.

Tenho a impressão de que quando uma ponta de iceberg desse conhecimento caiu nas mãos do "homem branco", ele se deslumbrou e ficou emaranhado na superficialidade de sensações psicofísicas convidativas... e só. Na verdade, antes fosse "e só"... não foi. Os poderes mágicos e sagrados não estão presentes sem a orientação de um xamã e restam apenas os poderes mais densos, por assim dizer. É outra coisa! O fato de tomar uma beberragem de uma "planta sagrada" não faz com que esse seja um ritual sagrado e com objetivos de cura.

Mas aí vem a pior sensação: a de que esse conhecimento ancestral desses xamãs possa estar perdido para sempre. Minha ponta de esperança é que esse conhecimento esteja muito bem guardado dentro da comunidade; é que exista algum mecanismo que proteja esse conhecimento da banalização que nós, brancos, acabamos por ocasionar. E com isso vem uma pontinha de tristeza, por não pertencer a uma comunidade rica e profunda, em sintonia com as leis e forças da natureza; um ponta um pouco maior de tristeza por me perceber pertencente a uma comunidade nociva e destrutiva.

A visita ao museu me fez lembrar, obviamente, do livro A Erva do Diabo, que li quando era adolescente e que foi uma das referências que me fez querer muito ter um mestre. E você deve saber que agora eu tenho. Embora eu ache fascinante o mundo das plantas (não é a toa que sou engenheira florestal!), fico também um pouco aliviada por essa filosofia que eu escolhi não fazer uso de nenhum tipo de substância externa ao corpo para o desenvolvimento do praticante ;)

Esse papo também lembrou do Dia do Curinga, que fala de uma substância misteriosa, poderosa e perigosa... talvez uma forma sutil de fazer os adolescentes repensarem a relação com as drogas...

Enfim, isso tudo me faz ter a certeza de que esse universo lindo e poderoso das plantas mágicas e sagradas não é pra mim... se o conhecimento ancestral está preservado, ele não chegará a mim e, se chegar, é porque não está preservado e certamente está deturpado. Entende?!

Claro que me sinto meio triste... eu queria ser uma índia, queria ter um xamã, um pajé, queria conversar com as plantas e com os animais, queria viver sob o relógio da natureza, sob as ordens expressas e indiscutíveis de Pachamama. Mas também só queria viver nesse cenário se não tivesse nenhum homem branco por perto, porque a gente é fueda pra carajo!

Bem, vou buscando meus oásis na selva de pedra... vou tentando aprender com essas sabedorias que, se não estão disponíveis por completo, deixam-nos revelar conceitos que podem ser úteis. E busco principalmente dentro de mim, porque acredito que índios e brancos somos feitos do mesmo material... e lá no fundo, no cerne, somos iguais!

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