terça-feira, 17 de novembro de 2020

o macro e o micro - a vida humana em perspectiva


Esses dias assisti uma palestra do filósofo Roman Krznaric sobre seu novo livro "Como ser um bom ancestral". Ele faz um chamado ao pensamento de longo prazo, trazendo à luz grandes armadilhas do "curto-termismo" que nos invade constantemente. Essas armadilhas vão desde hábitos cotidianos, como a "tirania do relógio" e a "distração digital", até estratégias políticas e econômicas que tem um alcance muito restrito (a próxima eleição) e volátil (especulações financeiras).

Para pensar pra frente - pra frente de verdade, e não pro próximo par de anos - ele propõe alguns caminhos, como considerar qual legado você deixa para a próxima geração, ou o que ele chama de raciocínio de catedral, que é construir coisas (ou ideias) que sabemos que não serão finalizadas na escala da vida individual. Ele fala também em justiça intergeracional e cita os nativos norte-americanos, que consideram o bem estar da sétima geração em suas decisões.


E tem um outro conceito que ele traz, a Humildade do Tempo Profundo, nos chamando a perceber que somos um piscar de olhos no tempo cósmico.

Fico aqui pensando que ser esse piscar de olhos pode tanto nos dissociar do ego, ao nos colocar diante dessa magnitude toda, quanto causar uma sensação de "pra que legado, pra que catedral, se no fim serão apenas alguns piscares de olhos?" - e o que me vem é que expressar aquilo que está no meu potencial independe de "querer" deixar um legado; me parece que a coisa está mais para evitar as armadilhas da modernidade, que nos distraem constantemente do que realmente importa, do que estabelecer de forma racional metas de longo prazo... porque no fim acredito que vidas bem vividas, vidas conscientes e despertas, naturalmente contemplam os valores de legado e justiça intergeracional.

[ só é preciso estar atento e forte, porque as armadilhas são taaaaaaantas... ]

E hoje, visitando meu quintal, fiquei um tempo observando as flores minúsculas que crescem aqui e acolá, espontaneamente. São tão pequenininhas e tão, tão, tão encantadoras, complexas, detalhadas. Perfeitas. Olhar para o micro também me posicionou nesse piscar de olhos cósmico. De alguma forma, adentrar a escala dessas florzinhas me fez sentir a potência do "pequeno", e me fez rodopiar pelos meus conceitos de grandeza - e pequeneza.

Pensei no raciocínio de catedral, a coisa de construir algo grandioso que jamais verei pronto, o que me leva a pensar nos conselhos de "pensar grande", "sair da zona de conforto" - e o que essas florzinhas me contaram é que o GRANDE é composto por inúmeros pequenos, cada um complexo, detalhado, perfeito e inteiro em si.



Deixo uma música pra finalizar... Ótima, da Flaira Ferro


... que nada nos distraia do amor

nem mesmo as vitórias da vida!




sábado, 24 de outubro de 2020

sobre ir à luta...


Um amigo xamã me disse que na visão dos povos indígenas que ele estuda, a Primavera é o tempo do Guerreiro. É tempo de fazer o que precisa ser feito, é tempo de novos começos, de desbravar, de parar de inventar desculpas, se encher de coragem e ir à luta.

Venho então refletindo sobre as minhas batalhas, as que já lutei, as que venho lutando e as que se anunciam no horizonte.

E hoje me veio uma percepção... as batalhas não precisam necessariamente ser "épicas". Quero dizer, épicas aos olhos dos outros. Quantas batalhas internas você já não travou? Quantas derrotas e quantas vitórias que ninguém nem ficou sabendo, ou no máximo aqueles com quem você convive muito, muito de perto.

Às vezes fico com a sensação de que pra uma vitória ser legitimada, ela precisa ser vivida num palco - ou numa arena. Fica essa impressão de que, "se a galera não viu, não existiu"... ou, pior: não valeu. Penso nessa cultura de cada vez mais exposição, a "sociedade do espetáculo", essa vida de rede social, e vejo que por mais que muitas vezes eu me afirme "superior a isso tudo", tem algo que permeia, de forma quase que imperceptível, meus pensamentos e sentimentos. Eu hein...

Junto com essa percepção das batalhas internas, veio outra interessante também... que muitas vezes a grande batalha é justamente evitar a batalha (!). Algo assim: se minha vida vem se desenrolando sem grandes sobressaltos, é possível que eu esteja fazendo de fato um ótimo trabalho, e não "acomodada na minha zona de conforto", como muitas vezes essa tal "sociedade do espetáculo" nos acusa.

E aí, como saber?! Como saber se você está acomodado, fugindo à luta, ou lutando bravamente, mesmo que de forma silenciosa e invisível, para ser fiel à sua essência e ao que VOCÊ acredita ser o certo a fazer - ou NÃO fazer?

Conhecendo-se!

E conhecendo também histórias de outras pessoas... cultivando a tal da empatia, gerando acervos de experiências, mesmo que seja através de livros, séries, filmes, podcasts.

Não existe receita, não existe "caminho certo" a não ser aquele que é só seu. E só você para descobri-lo, passo a passo.

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Na foto, em 2012, na Turquia, numa viagem com minha mãe e minha irmã, com Joaquim na barriga e sem ninguém mais saber... a minha melhor definição de "batalha interna", rs... eu, na plateia (vazia), o palco em obras, não há nenhum espetáculo para ver... a não ser o que acontece dentro de mim. Essa "legenda" só apareceu depois que escrevi o texto. Escolhi essa foto antes de escrever, porque me deparei com ela ontem, por motivos outros, e queria apenas uma foto bonita e especial pra ilustrar (!)



quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Televisão




A televisão sempre teve sua presença e seu lugar nas minhas casas, quando criança e depois, mas sempre uma presença discreta e um lugar de "mantenha-se no seu lugar". Naturalmente. Não lembro de grandes crises com relação a televisão na infância, nem na adolescência. Tenho memórias de fases da minha vida ilustradas por programas de televisão. Lanterna Mágica, Pantanal, Rá-, Tim, Bum, X-Tudo, Mundo da Lua, Castelo Rá-Tim-Bom, Confissões de Adolescente, Vestibulando, Metrópolis, Programa Legal, Vídeo Show, Malhação, Sinhá Moça, Senhora do Destino, Globo Repórter, Fantástico, Pantanal (de novo)... não quero nem voltar a ver nada disso (já tentei, e por isso afirmo: não quero), porque não quero macular essas memórias, todas deliciosas.

Aí vem a fase cabeção, sem TV, achando TV a coisa mais fútil e alienante do mundo. Muitos livros, muitos livros, muitos livros. Teatro, cinema. Cinema europeu, claro, rs... exceções pra Woody Allen e Tarantino, afinal, né... Memórias deliciosas também.

Papo vai, papo vem, acabei conhecendo a antroposofia, pois meu orientador do mestrado estava super envolvido com a escola Waldorf da filha pequena. Aí lacrô! Morte à TV!!!

Quando meu marido e eu estávamos na fase de fazer os acordos de como seria a vida com filhos (sim, sou dessas e faz tempo!), abolir definitivamente a TV de casa era condição inegociável. Veio o filho, foi-se a TV.

O filho cresceu, eu pisquei, e quando vi a criança já assistia vídeos no celular, iPad, computador. Veio o segundo filho, e começou a assistir telas bem mais novo do que o primeiro.

Aí veio a pandemia... ah, a pandemia! Sem escola. SEM ES-CO-LA-A-A-A!!! Os desenhos animados tornaram-se mais frequentes, e justo no momento que as crianças estavam quietas, sem me pedir nada, eu ficava sem meu computador, pois era ali que eles assistiam.

Resolvemos então comprar uma TV.

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[pausa dramática]

Se você tem e sempre teve TV em casa pode não estar entendendo meu drama, mas, acredite, não foi fácil admitir que eu realmente queria uma TV em casa.

E assim foi.

Compramos um bela TV, grandona, com imagem espetacular. As crianças amaram... e eu também!

Pra estrear o novo aparelho, eu e o marido começamos a assistir Outlander e o programa 'colocar crianças na cama e correr pra assistir "nossa novelinha" ' tornou-se cada vez mais delicioso. Antes da TV frequentemente cada um ia pro seu canto (e pra sua tela), depois das crianças dormirem. Agora, com a TV, temos um compromisso juntos, assistimos juntos, comentamos, damos risada (assistimos Modern Family também, rs...), vamos pra cama juntos...

Eu realmente não esperava que a televisão pudesse nos trazer tempos de tanta qualidade (!). Além da óbvia qualidade ergonômica (porque nunca deixamos de assistir umas coisinhas... na tela do celular, segurando iPad, com computador em cima da cama...), mas também a qualidade de tempo juntos, de ter um momento de lazer compartilhado entre o casal e sem crianças, tão raro nesses tempos de distanciamento social, com poucas ajudas pra segurar a onda com os pequenos.

Viva a TV!


sábado, 12 de setembro de 2020

essencial à vida

na busca pela essência, pelo essencial, foi tirando os supérfluos, as superficialidades

descamando, descascando... até onde? O que resta?

viu-se no cerne. Duro. Seco.

na busca pelo que é essencial à vida, caminhou justo em direção à imortalidade do que já não mais vive.

e percebeu que a vida se dá na fluidez, nos fluidos, na água que vem e que vai, não pelo cerne, mas pelas camadas, pelas superfícies

à flor da pele

saindo da madeira dura e seca, percebeu que lá na ponta as flores, em sua imensa variedade de cores e formatos e aromas e tamanhos alimentam a vida, porque vida é diversidade, variedade, criatividade, expressão

a magnitude do que vive não exclui, aceita

vida é aceitação

criação

relação

tudo importa, tudo cabe, tudo pode

o essencial é a amplidão, o espaço

a água, a umidade

o calor, a vitalidade

a respiração

a base

e quem mais chegar

sem limite

Deixa rolar, deixa viver, deixa fluir

e o que sobra?

a vida aceita

e regenera

e revive

tudo flui

onde - e enquanto - há vida

segunda-feira, 6 de julho de 2020

depois da tempestade...


... vem a bonança - diz o ditado.

e depois vem tempestade de novo, e depois mais bonança... e cada uma é de um jeito, tem sua intensidade, sua duração e suas novidades.

a vida é cíclica

e cada ciclo é único

--- se você tem alguma familiaridade com a vida cíclica da fisiologia feminina, vai entender o que vou falar a seguir... e se não tem, pode me perguntar que vou adorar dizer o que tenho conhecido e percebido desse tema ---

nesse meu ciclo [menstrual] aconteceu algo inédito - ou pelo menos inédito segundo essa ótica de percepção. Aconteceu que vivenciei uma TPM em plena fase pré-ovulatória (!!!). Explico: lá estava eu em minha habitual, cíclica e perfeitamente saudável fase pré-menstrual, que traz grandes desafios, principalmente pelo fato de que culturalmente não estamos muito dispostos a olhar e lidar com sombras (pra resumir... como disse acima, falo aqui pra quem já caminhou um pouco nessas terminologias e simbolismos... não porque eu queira restringir "meu público", mas porque se for escrever sobre todos os detalhes não chego onde quero relatar). Enfim, vivenciei minha TPM e eis que chega a menstruação, ah, que alívio! O corpo, a natureza, ajudando a colocar os limites, como que dizendo "ok, agora chega! Hora de mudar o foco".

E como habitual, lá pelo dia #3 eu estava me sentindo plena, disposta, usando as lentes de arco-íris que tanto gosto - e a cultura também, então fica fácil a vida, né?! Aí uma voz me sopra no ouvido "aproveita a disposição e trabalha!". Essa voz é da minha terapeuta, que numa sessão já longínqua me disse que os desafios da TPM são para serem trabalhados ao longo do ciclo, porque senão de fato fica uma sobrecarga impossível de administrar, uma avalanche num curto espaço de tempo, e a gente fica soterrada.

Respirei fundo, arregacei as mangas, prendi o cabelo, e lá fui eu. Revisei as pendências do ciclo anterior, revisitei os temas, li e escrevi, estudei de verdade. E aconteceu o que acontece quando a gente "cutuca" algo: a energia se movimenta, as peças se rearranjam e todo o sistema muda, responde, reage. E aconteceu o que acontece quando a gente não está acostumado, habituado, treinado, a lidar com o que vem, com o inesperado, com a ausência de controle e garantia: BUG. Eu não sei e não vou pesquisar agora qual é exatamente o significado dessa palavra, que acho que vem da computação, mas o que quero dizer é que dá uma pane, uma travada. E aí, seguindo essa minha descrição de ações e reações, quando a gente trava, tensiona, endurece, todos os fluxos se comprometem, a energia fica estagnada em algum ponto, e quanto maior a energia, maiores as chances da barragem se romper e descer aquela água violenta levando tudo que estiver no caminho - e às margens dele!

Reconheço - a meu favor - que em minha trajetória de autoestudo tenho investido esforços em suavizar as barragens. Tudo o que quero é deixar fluir, então minhas barragens realmente não estão lá essas coisas... e por outro lado, tenho investido esforços também em amplificar minha energia, em me conectar com forças acima, abaixo, aos lados, em todas as direções e dimensões. Tá entendendo né?

Fui inocentemente fazer uma lição de casa, e quando me dei conta estava no meio de uma "tromba d´água". Passou. Entre mortos e feridos salvaram-se todos. Veio a bonança. E o que essa bonança me mostra? Ela me mostra, com fundo de céu azul, árvores derrubadas, galhos quebrados, pedras que rolaram. Ela me mostra, no frescor da manhã, teias de aranha que reluzem cobertas por gotículas. Ela me revela, junto com o agradável cheiro da terra molhada, o trabalho dos inúmeros seres decompositores e toda a matéria orgânica em decomposição.

E consigo acessar todas essas imagens porque já estive de fato em uma tromba d´água, porque já caminhei de verdade em uma floresta e vi clareiras recém abertas por enormes árvores que caíram, porque já revolvi o chão de folhas e galhos úmidos e senti com as minhas mãos a terra se transformando.

"É de manhã/ Vem o sol mais os pingos da chuva que ontem caiu/ Ainda estão a brilhar/ Ainda estão a cantar/ Ao vento alegre que me faz esta canção..." *


A natureza e a arte como bálsamos para as tempestades internas.

E conectando tudo isso, as relações, as parcerias, os espelhos que nos são aqueles seres humanos que se achegam pra compor essa dança.

Mas pra encerrar a história - ou pelo menos esse capítulo dela - quando passou essa minha tempestade e me vi em meio à bonança, lembrei de uma conversa com um amigo, desses que parecem anjos da guarda disfarçados. Na ocasião ele me deu uma percepção de que nosso desenvolvimento seria como engrenagens ascendentes. Cada roda fica girando, ora você está em cima, ora embaixo, e que o grande "pulo do gato" é, estando no topo, pular pra roda acima! A consequência é que você chega nessa outra roda "por baixo"... mas quando subir, vai subir de verdade, e não apenas ficar dando voltas sem sair do lugar.

Esse fenômeno acabou de acontecer comigo!

Uhuuuuuu

=D


* essa referência faço questão de deixar: essa música ecoa em meus ouvidos na divina voz de Milton Nascimento... mas ao pesquisar descobri que trata-se de uma parceria entre Dolores Duran e Tom Jobim. A letra, que me fala ao coração, é dela, e foi um enorme presente conhecer um pouca da história dessa mulher
"ela foi uma compositora e cantora que como poucas tratou das dores de amor e da solidão" Aqui o link onde essa história é contada lindamente.


segunda-feira, 1 de junho de 2020

a índia e o boto

sua pele morena se alegra ao sol

fica radiante, macia como a paina, apetitosa como fruta madura

seus pés se alegram na terra

no tapete de folhas da floresta, na areia do fundo do rio, nas pedras do alto da montanha

seu corpo se alegra quando corre, quando pula e quando deita

os cabelos soltos, livres como ela

os olhos no alto, nas copas das árvores, nas nuvens, nas estrelas

o coração bate forte e as palavras escapam da boca

quando está com ele

e quando não está também, porque é nele que pensa

ele, dizem, é encantado

mas mal sabem, que seu encanto é por ela

domingo, 24 de maio de 2020

a feiticeira e a canja

era uma vez...

... uma mulher de corpo forte e sereno. Exibe a tranquilidade de quem já viveu o suficiente para saber que "vai passar" e a vitalidade de quem ainda se permite tentar mais uma vez. Uma mulher esguia, de cabelos escuros, lisos e longos, mas presos. O rosto tem suas marcas e os olhos são de quem não deixa escapar nada; sua boca expressiva esboça sorrisos que facilmente se transformam em risadas; e dali saem palavras contundentes. É bom saber disso... você pode até não gostar muito do que ouvir, mas lá no fundo saberá que trata-se da mais pura verdade.

Ela vive em uma casa ampla, com janelas generosas e três portas - ela gosta de ter opções, e caminhos, e horizontes.

Com ela, seus homens; e um bicho, fêmea como ela, guardiã e amiga.

Essa mulher gosta de sopas e hoje resolveu fazer uma canja. Foi até a horta, mesmo sendo noite. Aproveitou para olhar o céu estrelado e se sentir menos só, na companhia das estrelas. Colheu seus temperos e foi para o fogão, que já estava com labaredas empurrando a fumaça chaminé acima - tarefa de homem trazer a lenha e acender o fogo. Picou os legumes, cultivados pelas vizinhas, fortes e serenas como ela. Tê-los ali era uma forma de estarem juntas, pois, embora vizinhas, viviam distantes no espaço, separadas pelas montanhas, riachos, florestas; mas unidas no coração pelas luas, pelas proles, pelas histórias compartilhadas ao pé do fogo e das cachoeiras.

Mas sim, a canja. Um pouco disso, uma pitada daquilo, e ali se faz magia. Uma taça de vinho acompanha. O fogo, a água, a alquimia que vai pra mesa, e pros corpos. Que nutre de minerais e também de ânimo - ânima - alma.

Suas sopas sempre são panelões... talvez na esperança de uma visita que chega pro jantar, entrete as crianças e depois lava a louça enquanto pai e mãe colocam os filhos na cama, para depois os adultos poderem se estender em conversas regadas a vinho ao pé da lareira. Esse, aliás, é um sonho que ela cultiva, e que parece ter flores mais demoradas e delicadas que a camomila que ela plantou há meses e continua apenas verde. O sonho de ter companhias que ajudem a tornar a vida menos árida... companhias que ajudem a tornar os infinitos afazeres domésticos menos duros, companhias que ajudem a dissolver os embates com as crianças, companhias que, por mais paradoxal que pareça, possibilitem momentos de solitude e silêncio.

Porque parece que existe algum número mágico de pessoas necessárias para fazer uma casa funcionar sem exaurir ninguém; parece que existe algum número mágico de proporção entre adultos e crianças (e idosos, e adolescentes) para que todos possam aprender saudavelmente com todos. Ela sabe que esse número mágico é maior que dois adultos; que essa proporção mágica é diferente de dois adultos e duas crianças. E que até mesmo o cachorro talvez careça de companhia.

E ela sabe também que para esse sonho, diferente da camomila que já está plantada, ela não tem ainda nem sementes.



quinta-feira, 16 de abril de 2020

a casa, as crianças, as mãos e a escrita

hoje faz um mês que estamos reclusos (não sei se essa é a melhor palavra... mas... quero não me preocupar com o que é "melhor", e sim com o que é possível)

um mês sem escola - com duas crianças em casa, 7 e 3 anos
um mês sem empregada - com duas crianças em casa
um mês sem babá (aquela que me proporcionava, uma vez por semana, uma tarde a sós comigo mesma e uma noite a sós com o marido) - com duas crianças em casa
um mês com o marido em home office - com duas crianças em casa
um mês dando aula por videoconferência pela primeira vez na vida - com duas crianças em casa
um mês sem ir à academia, sem ir à terapia (fazendo sessões via trocas de áudios, pelo menos), sem tomar café da manhã na padaria, sem conversar descontraidamente com as amigas, sem poder contar com uma ou outra vó pra deixar as crianças

enfim... um mês com a casa e as crianças! E com o marido, é claro... longas e duras conversas com o marido... a divisão do trabalho, as questões de gênero, a minha necessidade por respiro e espaço, os meus limites em relação ao trabalho dele, os meus anseios em relação ao que possa ser um trabalho meu. Sabe, nenhuma novidade... as pautas são as mesmas, sempre estiveram presentes... mas esse tempero de "não poder" sair de casa traz um colorido todo especial! E deixa os limites gritantes. Literalmente.

e a louça na pia, e a comida por fazer, e a roupa no cesto, na máquina, no varal

eita que o sol já se foi e as crianças precisam ir pro banho!

o que vamos jantar?

hoje consegui varrer a cozinha

os banheiros precisam ser lavados... sábado acho que consigo

e ali no canto, juntando teias de aranha, meus fios e agulhas... a maratona da casa e das crianças não me deixa chegar nesse canto. O que não tem chegado, na verdade, acho que é a inspiração pra fazer algo... até pego as agulhas vez ou outra, começo uma coisa, não vai em frente...  uma criança chama, ou brigam, ou pula em cima de mim, ou me pede pra fazer algo extremamente mirabolante (tipo, um poncho!)... começar e parar é complicado pra mim... quero mergulhar... e não consigo... então não faço

o caderno, diário, até que consigo manter com alguma escrita. Pequenos fragmentos do dia, a cada dois ou três dias pelo menos. Publico vez ou outra alguma frase inspirada nas redes sociais... mas ainda não saciam minha vontade de escrever...

e as mãos não param!

a pele vai ficando seca, as unhas quebradas, haja trabalho manual! Lava, pica, mexe, esfrega, varre, estende, dobra. Trabalho manual, braçal, corporal

e hoje elas encontraram a enxada. Eu estava precisando desse trabalho pesado, a força da lâmina cravando na terra, logo abaixo da touceira de capim [não quero mais o capim ali... quero milho, quero verduras, quero flores]. O braço empurra na direção contrária, fazendo uma alavanca, sai aquele monte de raízes. A mão vai lá, pega a touceira, joga pra fora do canteiro. E vamos pra próxima. A terra está feliz, cada enxadada, uma minhoca! Vou devagar, cubro as minhocas que se retorcem ao sol. O suor escorre no rosto, seco com a camiseta que a criança deixou jogada no caminho. Queria continuar, mas é hora do almoço... não hora de relógio, porque não to nem aí pra relógio, mas a hora da fome mesmo... então é isso, aprender a parar, a mudar... e a retomar. À tarde teve mais enxada, e teve mais hora de parar, sem querer parar

e agora também... preciso parar

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Como algo é tornado lixo?

Lixo é um tema que me afeta desde que me entendo por gente. Eu tinha 11 anos quando aconteceu a Eco 92, a famosa conferência sobre meio ambiente, sediada no Rio de Janeiro. Na época, minha mãe estava engajada em um grupo ambiental da cidade e o tema pulsava pela casa. O bom uso dos recursos, água, energia, materiais... e a destinação dos resíduos... o lixo.

Minha adolescência foi permeada pelos temas da Agenda 21 e a afinidade com a natureza me levou a estudar Engenharia Florestal, onde busquei me aproximar da educação ambiental, estagiando com o professor que foi responsável por grandes aberturas no meu modo de ver o mundo. Não sei explicar exatamente o porquê, mas não segui com ele... acho que seus questionamentos eram tão fortes e tão profundos que eu simplesmente não tinha estrutura emocional para lidar... e fui me aproximar das árvores, esses seres tão encantadores, lindos, imponentes. Fui buscar entender as árvores. Depois veria que foi um caminho bem equivocado, porque na verdade eu nunca quis "endendê-las", apenas contemplá-las... mas ok, isso é outro assunto.

Pois bem, o lixo. Como algo é tornado lixo?

Observando minha casa e os lixos que produzo nela, vejo que são coisas que não servem mais. Já serviram bastante, foram bem importantes, e de repente, não servem mais.

O maior volume é de embalagens. O saquinho de leite, as garrafas de suco, cerveja e vinho, o plástico que envolveu o queijo, a lata de molho, o plástico do macarrão, o papel da farinha, o frasco de shampoo. Foram muito úteis, me possibilitaram trazer todos esses produtos pra casa. Algumas eu reutilizo, adoro vidros! Mas a maioria acaba não servindo mais.

Tem os desenhos das crianças... alguns eu guardo, anoto o nome, a data, ficam pra posteridade, talvez adiando seu destino de lixo... mas muitos vão para o lixo agora mesmo... um material que serviu, que foi usado, bem usado... mas já cumpriu sua função, não serve mais.

Tem coisas quebradas, ou desgastadas. Serviram durante um bom tempo, mas chegaram ao fim. Qual o limite pra considerar algo tão desgastado que não sirva mais? Que não sirva pra mim nem pra ninguém... porque tem coisas desgastadas que envio para pessoas que talvez possam aproveitar... o que é pra mim um incômodo sim... aquilo não está bom o suficiente pra mim, mas pode servir a outra pessoa... não necessariamente porque tenhamos gostos diferentes, mas certamente porque temos condições de vida diferentes, que afetam nossos níveis de aceitação.

Tem as etiquetas das roupas... algo que não serve mais, mas não que eu tenha usufruído delas. São uma necessidade de quem fabrica, de quem vende. Por mim, não precisaria de etiqueta nenhuma... ok, eu gosto de saber a composição do tecido... mas já existe solução pra isso, imprimir as informações da etiqueta na roupa. Sei lá se é a melhor solução, ou se funciona pra tudo...

E tem o lixo do banheiro... ah como eu queria que fizéssemos como nos "países desenvolvidos"... vai tudo pra privada... e trata-se com o esgoto. O papel se desfaz, não é difícil. Sabe qual o entrave aqui? O formato dos vasos sanitários, que tem uma saída estreita e entope se jogar papel. Quando construímos nossa casa pensei nisso, dimensionamos encanamento e fossa pra receber os papeis... só que não passou pelo vaso! Podemos então usar ducha e toalhinha, como "antigamente"... pode ser uma solução...

E teria o "lixo orgânico", mas aqui em casa os restos orgânicos não viram lixo! Os restos dos alimentos voltam pra terra e lá, não são lixo. Restos de matéria orgânica na terra são apenas restos de matéria orgânica... faz parte da natureza, faz parte do ciclo. Decompõem e voltam a ser terra. Ufa!

Enfim, não consigo pensar em lixo sem pensar nas suas consequências e em formas de diminuir esse volume que, sei, não some quando colocado na rua.

Estamira diz que no lixo vem muito descuido... sem dúvida! Com esse grau de descompromisso que temos com o lixo na vida urbana, o descuido acaba sendo uma consequência (quase que) inevitável. O máximo de educação e compromisso que nos ensinam com relação ao lixo é levá-lo até um local "adequado". Não jogue lixo no chão. Jogue num saquinho (ou sacão), e pronto! Aqui encerra-se sua responsabilidade com o resíduo que você acabou de produzir. Parabéns!

Desde a Eco 92 temos tentado ir um pouco além, trazendo também a educação e o compromisso em separar o lixo. Reciclável, não-reciclável, orgânico. Porque lixo separado pode deixar de ser lixo (!). Resíduos orgânicos na terra não são lixo, são adubos; resíduos recicláveis bem destinados não são lixo, são matéria prima. Lá se vão quase 30 anos e estamos engatinhando nisso... mas ok, é um processo, há esperança.

No fim, pra mim, a principal forma com que algo é tornado lixo é o descompromisso. Eu torno algo lixo quando abro mão do meu compromisso com aquele material. Porque, o que é lixo? Lixo é aquilo que a Terra não engole. Se a Terra não engole, quem tem que engolir é quem produziu e quem usou. E se ninguém vai engolir, se ninguém vai assumir um compromisso com aquele resto, aquele resíduo, temos lixo. Lixo é descompromisso.


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o que nasce em uma aula/oficina de artes-manuais?
quais relações acontecem?
qual o destino das coisas produzidas?

reciclar?
reutilizar?
sustentabilidade?
quando as palavras se tornam ecos?

fazer é pensar
qualquer fazer é pensar?
qualquer pensar é fazer?

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o que nasce de uma aula/oficina de artes-manuais?... as possibilidades são tão diversas quanto a diversidade de seres que estiverem interagindo... pode nascer muita coisa, pode não nascer nada...

aulas e oficinas estão mais para sementes e ferramentas do que para sementeiras. As sementeiras são as pessoas, cada pessoa. Cada pessoa um solo. Chega a aula/oficina, e promove algo para esse solo. Aí podem surgir as relações

professor-aluno; aluno-aluno; conteúdo-aluno; material-aluno; conteúdo-material-professor-aluno, todas as combinações possíveis e as impossíveis também (!)

as relações podem vir a afofar esse solo, regá-lo

as relações podem também ser sementes

as relações podem ser o sol, a chuva, a geada... chuva que molha, chuva que alaga, afoga

o destino dos materiais?... a profundidade da relação determina o destino... de quanto tempo essa relação precisa? que sementes quero aguardar germinar dessa relação? que sementes quero aguardar que cheguem nesse solo tão trabalhado? por quanto tempo vou esperar que o vento as traga? por quanto tempo vou esperar que essa casca dura se quebre pra ver o broto? vou esperar? esse é o destino do material produzido... a relação que estabeleço com ele. Eu & Ele. Em que medida o professor influencia esse destino? Na construção dessa relação... como se dá? Tem como controlar? Tem como garantir? Não... só tem como cuidar...

as palavras se tornam ecos quando são sementes num solo seco
podem até germinar... mas não enraízam

o fazer pode ser a enxada (ou a mão) que revira a terra

o fazer pode ser o húmus que coloco numa terra fria

o pensar pode ser semente

se o fazer torna-se pensar, a semente foi plantada na terra fofa, fértil

se o pensar torna-se fazer, a terra se abre para receber uma semente lançada
ou, a semente lança seu broto, seja lá como for a terra, porque semente quer brotar!

se a terra é fértil, alguma semente há de brotar, mesmo que não seja a que esperamos
sim, todo fazer é pensar
o fazer fertiliza a terra e em terra fértil vidas aparecem

e não, nem todo pensar é fazer
nem todo broto rompe a terra, nem toda fenda permite o nascimento de uma semente
semente boa não é garantia de broto enraizado

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reflexões à partir da disciplina
Laboratório de Pesquisa e Experimentação em Artes-Manuais
Prof. Vinícius Airumã

Pós-Graduação em Artes-Manuais para Educação
Turma 3 - 2019/2020
Facon - Nina Veiga Atelier de Educação




segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

chorando de barriga cheia

estou chorando de barriga cheia

mas sabe o quê?

não estou chorando de fome!

o único choro legítimo é o de fome?

vamos entender que estou chamando de "fome" todas as necessidades básicas e essenciais à sobrevivência

pois é... sobrevivência

eu não quero sobreviver, eu quero viver

mas algo dentro de mim insiste em me fazer sentir culpa por isso

porque parece que enquanto houver seres humanos com sua sobrevivência ameaçada, não posso me dar ao luxo de chorar por dores que extrapolam as necessidades básicas e essenciais à sobrevivência

"problema de gente branca"

"mimimi"

"xatiada"

"coisa de menina mimada"

essas vozes ecoam na minha cabeça e no meu peito

braços, mãos e pernas ficam sem saber como ajudar

"faz uma caminhada"

"faz um tricô"

em versões mais amenas

e em versões mais radicais, dizem:

"vai fazer faxina então"

"e se você for produzir seu próprio alimento?"

como que dizendo: "assume o trabalho que precisa ser feito pra ver se essa xatiação não passa!"

até acho que passaria... mas cadê as forças?

só tem uma vontade de chorar e chorar e chorar

e uma vontade de ir pra praia

tá um dia tão lindo, um sol gostoso

tudo que eu queria era poder colocar poucas coisas no carro e ir até a praia

por que não posso?!?!?!

às vezes acho que me obrigo a ficar numa prisão porque existem pessoas presas

tenho medo de sair e esquecer dos que ficaram

tenho medo de me seduzir pelos prazeres da vida e ser ingrata, desleal

como se já não estivesse fazendo isso...

abafo o choro mas não deixo de encher minha barriga