quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Bolívia & Peru - Diário de Bordo: Ep. 6 - Camino Inka: de quem foi a ideia mesmo?!

Vou dar um pequeno salto de dois dias aqui. É que chegamos em Cusco no dia 01/01/2012 e começamos a Trilha Inca no dia 03/01. Cusco merecerá toda uma série exclusiva, então vou direto ao assunto da trilha e depois vou escrever com mais detalhes sobre essa cidade encantadora!

Bueno, enfim chega o ponto alto da viagem! Desde o início, cada lugar por onde passamos foi extremamente especial, com paisagens e histórias únicas, mas tudo parecia que era um treinamento pra Trilha Inca! E realmente em muitos aspectos foi... como a atenção com o peso da bagagem, os detalhes de higiene e segurança, os impermeáveis, a resistência física... não que todos esses quesitos tenham recebido nota 10 durante a trilha, mas se não tivéssemos tido todos esses treinamentos prévios, certamente ficaríamos "com nota vermelha".

Na saída pra trilha aconteceu algo que eu sempre achei a maior bobagem de falta de atenção, que ocorre sempre no Brasil nas mudanças de horário de verão, mas nunca tinha acontecido comigo: esqueci de ajustar o relógio do iPod pro fuso de Cusco e acordamos 1h mais cedo! Claro que só fui perceber quando estava pronta, indo tomar o café da manhã e estava tudo quieto, escuro, fechado... olhei no relógio de pulso e percebi a mancada! O PC ainda conseguiu dormir um pouco mais, mas eu fiquei "facebookeando"... eram 5h...

O nosso guia, Hernan, nos pegou no hotel às 6h30, como combinado. De cara um ponto positivo: o ônibus. Um microônibus novinho, espaçoso, limpinho. Tinha mais um grupo de três brasileiros, mas que estavam indo fazer a trilha de um dia (L). O nosso grupo era só a gente mesmo.

Umas quase 2h de viagem, com paisagens rurais muito bonitas, muito milho, batata, quinua, casas de adobe com uns tourinhos no telhado e enfim chega-se a Ollantaytambo, onde compramos as últimas bugigangas, como bolsinhas porta-garrafa, cajados e folhas de coca. O vilarejo é bem charmoso e deu vontade de passar um tempo por lá... só não sei quando!

No caminho fomos pegando os "porteadores", que são os homens que montam e desmontam as barracas, fazem a comida e carregam tudo isso! Mais um pouco de estrada e chegamos no começo da trilha, onde todos arrumam as bagagens. Recebemos nossos sacos de dormir e isolantes (que eles chamam de colchonetes, mas não passa de um EVA com uma capa). Embora soubéssemos que receberíamos esses equipamentos, não foi fácil organizar tudo na mochila, mas no fim deu certo.

Aí vem o Hernan pesar cada mochila. A minha ficou com 11 kg, a do PC e a do Lelo com 12 kg cada e a da Thássia com 8 kg. O PC ainda estava com a Baronesa, linda e poderosa, mas pesada, e quase se arrependeu de levá-la...

Começamos a trilha às 10h e o tempo estava muito bom, sem chuva e um pouco nublado, o suficiente para não fritarmos ao sol. Depois de só duas horinhas já tivemos a parada para o almoço. Outra surpresa boa! Mesa com toalha, banquinhos, pratos, copos e talheres de metal, guardanapo, um luxo!

De entrada teve torradinhas e sopa, depois um macarrão com molho de tomate muito gostoso e chá de coca. Caminhamos mais umas 3h até o acampamento e, como bem disse o Hernan, esse primeiro dia foi só para aquecer os motores. Caminhadinha tranquila, com poucas subidas, tempo agradável. Já começamos a ver algumas ruínas pelo caminho...

Os porteadores saem depois e chegam primeiro. E carregam MUITO mais peso e usam umas sandálias e as mochilas são improvisadas. Sempre o acampamento já está montado quando chegamos! O pernoite do primeiro dia é num povoado (não me pergunte o que aquele povo faz lá naquele fim de mundo!) e tem até banho com água quente por 5 soles! Não pensei duas vezes e tomei um banhão, até lavei o cabelo. Tudo muito rústico, um preguinho pra pendurar uma sacola, um chuveiro e só. Uma fresta na porta que deixa entrar um vento frio, lembra que você está nos andes!

Depois do banho a equipe nos esperava com chá e pipoca, a coisa mais fofa! Descansamos um pouco nas barracas (agora, olhando pra trás, depois de tudo que passou, fico me perguntando: "descansamos de quê?!?!") e logo já estava na hora do jantar. Todas as refeições começam com uma sopinha. Depois teve arroz e uns legumes grelhados, muito saborosos. Sempre tem também o ají, que é um tipo de vinagrete apimentado, uma delícia. Ah, eles usam muito coentro também (cilantro), mas não foi um problema...

Depois do jantar, um chazinho de "muña", um tipo de menta nativa, que eles pegaram pelo caminho. O céu estava estrelado e as montanhas em volta, muito altas, formavam um ninho escuro e protegido.

Impossível não refletir sobre o fato de que tínhamos uma equipe de 6 pessoas para um grupo de 4! Cinco porteadores mais o guia...

No segundo dia de caminhada a alvorada é às 5h30. Sabe como eles nos acordam? Um dos porteadores vem até a barraca e pergunta se a gente quer um "mate de coca". É muito bonitinho. Arrumamos as coisas, tiramos as mochilas das barracas para que eles as desmontem e vamos pro desayuno que, é claro, já está na mesa. Panquecas, pão na chapa, mingau de aveia!!!

Às 7h começamos a jornada do famoso "segundo dia da trilha inca". Famoso pra quem já fez ou já leu algo a respeito... o lance do segundo dia é que é são 5h direto só de subida! Falando assim não tem como passar a magnitude do que isso representa... vou tentar um pouco a seguir, mas pra saber, só fazendo mesmo...

A primeira metade da subida transcorreu muito bem. Cheguei a ter a ilusão de que não me depararia com grandes desafios. Claro que era difícil. Nessa altitude, qualquer esforço faz os batimentos cardíacos acelerarem muito; com esse peso nas costas, nenhum caminho é suave. E a subida é realmente íngreme, com uns degraus de pedra super altos. E só subida... não tem um planinho, uma descidinha, é só subida!

Nessa primeira metade não estava chovendo. Cheguei a ter a ilusão de que não choveria...

Depois de mais ou menos 2h30 de caminhada paramos para um descanso e eu estava me sentindo totalmente bem. Fiz uns alongamentos, respirei de forma profunda, ah, que prazer por estar naquele lugar!

Comemos o lanchinho que os porteadores nos deram (esse dia tem uma caminhada mais esticada e o almoço é já no acampamento final, então rola um lanchinho) e pé na trilha. Não tardou muito e começou uma chuvinha fina... coloquei o "poncho" que comprei de última hora em Cusco e estava tudo bem...

Mais um pouco e a chuvinha aperta, então coloco também a minha capa de chuva, com o poncho por cima, cobrindo inclusive a mochila, mas não coloco a calça impermeável. Grande erro! A água escorria do poncho e molhava dos joelhos pra baixo... além da chuva, fazia frio, muito frio... outra ilusão que tive quando me disseram que nessa época chovia muito é que seriam "chuvas de verão", do tipo, chove e abre sol... não, não e não! Não é assim!!!

Conforme a trilha vai subindo, vamos entrando no "reino das nuvens". Parece que não existe mais céu, só nuvem. TUDO é branco, tudo é molhado, tudo é frio. As mãos geladas, o rosto gelado, as pernas geladas (bem feito, com calça impermeável na mochila!). Logo sinto também os pés gelados... a fucking bota impermeável não é assim tão impermeável... a do PC molhou mais ainda e ele fez um video que logo vamos divulgar... as duas da Timberland, modelos diferentes, mas ambos "waterproof"... waterproof pras nêga deles! Pelo menos as botas Snake da Thássia e do Lelo deram conta do recado!

Nesse ponto da trilha rolou um desespero. O "diabinho" no meu ombro dizendo que aquilo era um programa de índio burro, que todos tinham avisado que seria a maior roubada, que eu poderia estar na praia e no entanto estava ali pagando pra sofrer. Mas o "anjinho" no outro ombro me consolava, dizendo que aquilo era exatamente o que eu queria, que meu principal objetivo com aquela trilha era testar meus limites, era expandir meus limites, era me observar frente a situações extremamente adversas.

E era mesmo. Por isso sempre digo: tenha cuidado com o que pede, porque é exatamente isso que você vai ter. A peregrinação foi longa o suficiente para que eu pudesse analisar cada intenção que tinha me levado àquele lugar, que tinha me colocado naquela situação. Se houvesse a opção de parar tudo, eu teria parado. Se fosse um simulador, se tivesse uma porta de escape, eu teria falhado, eu teria desistido, eu teria fracassado.

Mas desistir e fracassar nunca foram uma opção, simplesmente porque não dava. Era "lutar ou morrer", literalmente. Se eu desistisse ali, no mínimo, iria dar trabalho pra muita gente e colocaria, no mínimo, a minha vida em risco. E isso tudo é sério. E isso tudo passou pela minha cabeça.

A cada vez que eu levantava o rosto para olhar a continuação da trilha via pontos coloridos lááááá no alto da montanha. E quando eu achava que tinha chegado no alto, era apenas uma curva ascendente e lá estavam mais pontinhos coloridos lááááá no alto, para meu desespero.

Só que tudo termina e finalmente a subida terminou. Não teve comemoração, não teve foto. Eu sentia tanto frio, tanto cansaço, que na hora nem pensei que estávamos no ponto mais alto da trilha, com 4.200 m de altitude. O PC estava bem molhado e resolveu trocar de camiseta. Num gesto impensado e impulsionado pelo extremo frio, calculou mal a distância que estava de mim e me deu uma baita de uma cotovelada logo acima do olho direito... foi a gota que faltava para que eu irrompesse em lágrimas soluçantes.

Chorei, chorei tanto que senti contrações abdominais e até achei que fosse vomitar. Naquele momento o mundo desapareceu e tudo era uma escuridão fria, doída e solitária. Um ponto de lucidez, no entanto, me fez respirar e entender que se eu não parasse com aquilo e me pusesse a caminhar, não chegaria nunca em um lugar quente e seco.

Comi um chocolate e lá fomos nós, agora trilha abaixo por mais 1h30... fez as contas? 6h30 de caminhada quase que ininterrupta, das quais 4h30 com chuva e muito frio. De quem foi a ideia mesmo?!

Logo que começamos a descer o Hernan nos alcançou. Ele andava num ritmo mais lento, ficando por último no grupo, mas às vezes acelerava um pouco pra ver como estavam os da frente. Sempre que nos via, perguntava como estávamos, chamando cada um pelo nome e com um real interesse em saber, muito atencioso.

Ao nos encontrar nesse ponto, no começo da descida, ele olhou bem pra mim e falou: "Carolina, eres muy fuerte!". Eu já tinha dúvidas se realmente era, mas quando ele falou eu entendi que era mesmo! Do ponto de vista físico, não tinha do que me queixar. Estava sim com frio, mas sem dores fortes. Ficava às vezes um pouco ofegante, mas de forma geral consegui manter um bom ritmo. Do ponto de vista emocional, balancei, como já disse, mas a mente segurou bem a onda e fomos conversando o caminho todo (eu comigo mesma!). Si, amigos, soy muy fuerte!

Na descida a chuva abrandou um pouco e até vislumbrei a possibilidade de me sentir bem. Tinha alucinações com um ofurô cheio de água muito quente, dentro de uma sala de banho linda, limpa e perfumada. Alucinações.

E foi nessa descida que vi uma cena que eu definitivamente não gostaria de protagonizar: uma moça tremendo e cambaleando se senta na trilha e recebe ajuda do guia, passamos por eles e logo em seguida passa por nós um porteador correndo com essa moça nas costas escadaria abaixo. Provavelmente ela teve hipotermia e por sorte tinha um porteador voltando e estávamos perto do acampamento. Ela deve ter ficado boa, pois não soubemos outras notícias e notícias ruins sabe-se sempre.

Ao chegar no acampamento tomei o meu delicioso banho de lenços umedecidos, coloquei roupas secas e fomos almoçar. A Thássia e o Lelo chegaram pouco depois de nós e a mesa do almoço foi uma verdadeira euforia, cada um contando suas agruras, todos um pouco adrenalizados pelo feito. Era engraçado perceber como todos estávamos muito cansados, como tínhamos passado por situações realmente extremas, mas ali, naquele momento, éramos só sorrisos e exclamações.

Dormimos um pouco, com uma chuvinha agradável que se restringia ao lado externo da barraca (ufa!). Aproveitei também para escrever e registrar as impressões "frescas" da odisséia (caso contrário esse texto seria muito diferente...). PC diz: "escreve aí que eu tô cansado?".

O grande companheiro de caminhada foi, definitivamente, o cajado que compramos por 3 soles em Ollantaytambo. Há que se aprender a andar com três pernas e vale a pena. Chocolates são indispensáveis, para alimentar o corpo e "a alma", porque o conforto do doce faz milagres.

Mas o grande aprendizado do dia foi estar atenta para sentir o desespero chegando e não deixar com que ele se instale. Algo como: "olá desespero, como vai?" e depois: "ok, já deu suas caras, agora pode ir embora".

Dormi mal, não tinha sono, senti frio nos pés e tive que levantar às 2h da madruga pra fazer xixi. Ah, o xixi da madrugada nos acampamentos! Já falei sobre isso aqui no Aralume, mas esse, sinceramente, eu dispensaria. Uma névoa densa, tudo molhado, tudo escuro, tudo frio... e lá fui eu, mas foi bom porque depois consegui dormir um pouco.

O primeiro pensamento que tive, logo que acordei, no terceiro dia do Camino Inka foi: "meus pobres ossos, velhos e cansados, doem". Meus quadris ficam realmente castigados quando durmo em superfícies duras... e o corpo todo meio doloridão pela caminhada puxada do dia anterior...

O PC também está muito cansado e resolve que vai dar a mochila dele para um dos porteadores levar.

Tivemos um café da manhã espetacular, com um omelete delicioso, além de pão, manteiga, geleia, chá, leite, café. É tão bonitinho como os porteadores nos tratam... eles são tão cuidadosos... no começo eu fiquei com pena deles, por carregarem tanto peso, por não terem sapatos e agasalhos adequados, por terem que andar tão rápido... mas agora penso que eles devem ter um sentimento parecido em relação a nós, do tipo, "coitadinha dessa moça, tão fraquinha".

A primeira parte desse dia também é de subida, mas agora "só" 1h30. O pior é que nesse ponto andávamos em fila indiana, pois todos os grupos saem juntos e a trilha fica meio congestionada até os ritmos se estabelecerem e ser possível ter um certo espaço entre as pessoas.

Mais uma vez a cada curva eu tinha a sensação ilusória de que a subida havia terminado. Fica a impressão de que 1h30 é pouco, que vai passar rapidinho, mas não é bem assim...

Nesse dia monta-se um acampamento para o almoço e depois segue-se até o acampamento final, com umas 9h de caminhada ao todo. Esse almoço teve até sobremesa! Mazamorra morada, que é feita de milho roxo e parece um sagu, só que sem as bolinhas. Eu gostei.

Como sempre, antes de começar a caminhada perguntamos pro Hernán quanto tempo iremos caminhar e se terá subida. Dessa vez ele diz que tem pouco tempo de subida e depois "és más o menos asi", diz ele, inclinando a mão uns 20 graus. "Es el plano inka", ele diz e todos rimos!

Depois do almoço o PC carrega um pouco a minha mochila e é realmente muito bom andar sem peso nas costas. O relevo fica mais suave e dá até pra tirar umas fotos (existe um vácuo engraçado na cronologia das fotos!). Chove bastante, tudo branco e dá a impressão de que nunca mais voltaríamos a ver um céu azul e sentir o calor do sol na pele. Pelo menos agora estou com todos os impermeáveis e há um pouco mais de conforto. Fazemos uma parada para descansar e observar a vista e somos presenteados com um arco iris! Adoro arco iris! Pego novamente minha mochila e seguimos.

Chegamos ao acampamento debaixo de chuva e o Hernan pergunta se queremos um chá. Eu pergunto se tem pipoca e ele já solicita pro Cipriano, o chef. Daqui a pouco chegam uns pastéis de queijo que você não acredita! E pipoca também e "galletitas" e chá e café com leite. Mordomia pura!

Só que aqui recebemos "una mala notícia". Houve um desmoronamento que bloqueou a trilha. Alguns grupos decidem seguir para Águas Calientes, mas nós não conseguíamos nem pensar em colocar a mochila nas costas àquela hora. De qualquer jeito, o dia seguinte seria diferente do planejado... ao invés de caminhar 1h30 e ver Machu Picchu do alto ao amanhecer, teríamos que caminhar 3h até Águas Calientes e subir até MP de ônibus... o que não tem remédio, remediado está e na hora nem me dei conta da magnitude dessa mudança.

Tomamos coragem e fomos pras barracas, debaixo de chuva. Mais uma versão do banho de lenços umedecidos, roupa seca, organizo as coisas, escrevo um pouco. Vamos pro jantar, mais por tédio do que por fome, e eis que surge um verdadeiro banquete!

Como era a última refeição, os porteadores fizeram tudo o que tinha na cozinha e rolou até uma pizza de cheddar! Teve também batata frita e um monte de outras coisas. É de praxe que no jantar do último dia se façam os agradecimentos recíprocos e se dê uma gorjeta aos porteadores.

O Hernan fez um pequeno discurso, dizendo que eles agradeciam muito a nós, porque trabalhar na trilha é uma importante fonte de renda para eles. Também agradecemos todo o cuidado e atenção que eles tiveram com a gente e entregamos a gorjeta.

Lá vamos nós para a nossa última dormida na trilha, sabendo que a alvorada seria às 3h30!!!

Chove muito durante a noite e meu primeiro pensamento no quarto dia do Camino Inka é: "Noé, cadê a arca?!". Levantamos cantando todas as músicas que sabíamos para Santa Clara e não é que deu certo?! Parou de chover bem na hora que precisamos sair das barracas!

Levantamos mesmo às 3h30 e era um cenário de filme de guerra aquelas pessoas apressadas, com lanternas de cabeça, no meio da chuva, uma certa lama, recolhendo barracas, arrumando mochilas e se pondo para caminhar no escuro.

Andamos mais de 1h no escuro, até que começa a clarear e vislumbramos até pontos de céu azul. As cores do amanhecer estavam muito bonitas e nessa hora deu um aperto no coração: era para estarmos chegando na Porta do Sol e vendo Machu Picchu... não era, na verdade, porque não foi.

Como bem disse o PC, é um motivo pra voltar... eu, que no segundo dia não podia nem pensar na possibilidade remota de fazer aquela trilha de novo, agora quero fazê-la novamente sim, mas em um período sem tanta chuva, para curtir as paisagens e poder ouvir com atenção as histórias de cada ruína.

O caminho alternativo, devido ao desmoronamento, foi uma descida bem íngreme até a linha do trem e depois caminhar pela linha do trem até Águas Calientes. A Thássia estava com muita dor nos joelhos e fomos bem devagar. Nesse momento pensei que o treino de corrida que fiz foi uma boa preparação, não só pelo fôlego, mas pelos joelhos também... claro que trabalho bastante joelhos e musculatura associada nas práticas de Yôga, mas o impacto da corrida tem um outro tipo de solicitação... enfim, há que ter joelhos em dia, rs...

Fazia um lindo dia, sem chuva, com sol e céu azul. A mochila estava mais leve, pois os porteadores levaram os sacos de dormir e isolantes (e isso faz uma baita diferença!). Ao chegar na linha de trem o caminho era realmente plano (nem "plano inka" não era mais, rs...). Enfim, condições tranquilíssimas.

Mas foi aqui, meus amigos, nesse trecho, que me deparei com meu maior desafio. O desafio de aceitar a situação. De não ficar pensando "como teria sido se...". De caminhar devagar pra acompanhar o grupo. Ah, como é difícil isso pra mim!

Como sempre, fui dialogando comigo, fui observando os sentimentos e provendo clareza para não deixar as emoções dominarem. Aproveitei o ritmo mais lento para tirar fotos. Mas chega uma hora que não tem mais novidade e as fotos ficam iguais. Saquei umas guloseimas da mochila e mais uma vez o "Santo Chocolate" dá um alento. Mas é passageiro também.

Como dizem os velejadores, provavelmente tenha aprendido isso com o Amir Klink, não são as tempestades, mas sim as clamarias, os grandes perigos do mar. E lá estava eu, em meio a uma calmaria tediosa, que oferecia um sério risco ao meu bom humor.

Eis que então me lembro do Sancho, meu fiel escudeiro e ah, luz no fim do túnel! Peguei o iPod, fones e dá-lhe Milton Nascimento! "Com sol e chuva, você sonhava..." e por aí vai... "você pega o trem azul, o sol na cabeça"... E TUDO ficou bem. Assim, num passe de mágica tecnológica.

Por mim teria caminhado mais uma hora, mas chegamos a Águas Calientes. Tentamos trocar nosso bilhete de trem pra um horário mais cedo, mas não rolou. Tomamos um "brunch" às 9h (lembre-se que o café da manhã foi às 3h30!) e entramos no ônibus pra Machu Picchu.

Bem decepcionante essa parte da viagem, confesso. Além do que era estranho estar naqueles trajes de Trilha Inca, sem banho há três dias, botas úmidas e elameadas, e junto com os tiozinhos e tiazinhas gringos todos emperequitados em sua indumentária "vou conhecer Machu Picchu".

O Hernan fez um tour com a gente, contou algumas histórias, explicou a organização do santuário, mostrou os pontos principais. É sim impressionante, principalmente a parte do Templo do Sol, que tem as rochas polidas e perfeitamente encaixadas, mas minha atenção sempre se voltava para as montanhas. Era interessante, porque várias vezes eu me pegava olhando para as montanhas, enquanto o alvo da explicação estava na direção oposta.

Esses incas realmente escolheram a dedo o lugar dessa construção misteriosa. A paisagem é hipnotizante.

Logo veio uma chuva, tudo nublado de novo e aí me deu um enorme tédio daquela paisagem branca e cinza. Descemos para pegar o ônibus de volta, tinha fila, tinha chuva, tinha muita gente, tinha estadunidense folgado furando fila, fui ficando muito enjuriada.

Mais uma vez me concentro nos diálogos internos e vou recobrando o equilíbrio. E eu que pensei que os maiores desafios tinham ficado pra trás...

Passamos algumas horas meio à toa em Águas Calientes, onde tudo é muito caro. Mas mesmo assim compramos uns artesanatos e no meio da feira vejo um cachorro muito parecido com o Pajé. Ah, como esse destino maltrata meu coraçãozinho! Fico um pouco com o cão, tentando matar a saudade do meu Preto.

Na estação de trem há banheiros decentes, coisa que eu já estava até esquecendo como era. A estação estava uma muvuca só e ali não me senti deslocada pelos meus trajes, pois era o horário que a galera da trilha geralmente volta e estava um pior que o outro, rs...

A viagem de volta foi muito cansativa pra mim. Tanto o trem quanto a van que vai de Ollantaytambo a Cusco. Fui semidormindo a viagem toda, realmente exausta, mas sem conseguir descansar.

Chegamos no hotel umas 23h, tomei um banho que não foi dos melhores (fiquei brigando com o chuveiro, ora muito quente, ora muito frio) e caí na cama sem nem olhar pro lado. Nesse final de viagem, desde o trem, não teve conversa interna que desse jeito no meu humor. Sucumbi mesmo. Acho que tem a ver também com aquela relaxada que a gente dá quando "está acabando", mas que na verdade é uma grande cilada, pois, como já dizia algum sábio futebolístico: "o jogo só termina quando acaba!", hehe! O fato de "estar acabando" não quer dizer que já acabou, muito pelo contrário, é justamente o momento mais crítico, porque o cansaço está acumulado, o pavio está curto e não há mais o combustível da expectativa.

Mas é isso, amigos. Se você quer se por à prova e empreender uma jornada séria de autoestudo, faça a Trilha Inca no verão. Mas se você quer curtir as paisagens e chegar em Machu Picchu pela Porta do Sol, escolha outra época. Como meus objetivos tinham mais a ver com a primeira opção, considero que a viagem foi um sucesso! ;)

Nota para os swásthas:
Se não fosse o SwáSthya, não sei o que teria sido de mim nesses dias, então compartilho algumas experiências, que só vai entender quem pratica e estuda ;)
Algo que "descobri" nos meus treinos de corrida e apliquei incessantemente na Trilha Inca foi a execução de kírtans em manásika. Ajuda demais a manter a concentração, um ritmo e todos os efeitos que os kírtans proporcionam, muito desejáveis nessas situações.
Pránáyáma também é fundamental, tanto caminhando quanto nas paradas. Durante a caminhada tive que abrir mão do ajuste peitoral da mochila, para não atrapalhar o madhyama pranáyama. Nas paradas era muito bom fazer bhástrika, para aquecer e energizar.
Durante as penosas horas do segundo dia de caminhada pensei muito nos yamas e niyamas, mas principalmente nos niyamas. O observância de sauchan traz conforto físico, de santôsha, conforto emocional; tapas, o mais óbvio de todos, onipresente; swadhyaya: a natureza como escola e as situações extremas como professoras; íshwara pranidhana é o que pode te proporcionar um samyama "em trânsito", por assim dizer. 
Ásanas eu só consegui com um mínimo de conforto... depois que "o bicho pega" a prática acontece em outro nível. O mesmo para o yôganidrá.

6 comentários:

  1. Adorei o texto, parece que eu estava vivendo tudo isso com você. Gostei também da aplicação prática do Método. Já pensou em publicar um livro?? Você tem jeito para a coisa. Escreve muito bem, sabe envolver o leitor.

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    1. Obrigada Hélio! Fico feliz por ter conseguido passar um pouco a sensação do que foi a trilha. Tenho sim muita vontade de escrever um livro, mas confesso que não sei por onde começar, rs... qualquer hora sai ;)

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  2. Filha! Parabéns pelos posicionamentos que você foi e vem assumindo ao longo e depois dessa experiência e por desejar viver e conseguir aproveitar tão bem essa intensa e verdadeira oportunidade de fortalecimento, com a coragem, a lucidez e a sinceridade de sempre! Muito emocionada, me lembrou o espírito da Jornada do Herói, de Joseph Campbell, das Mil Faces de Deus, dele também. E do Sol que você tem nas costas. Só posso agradecer!

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    1. Obrigada mãe! Preciso ler Joseph Campbell... O Poder do Mito está lá de próximo da fila, me esperando voltar pra casa!

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  3. Filha, a Lúcia não conseguiu postar o comentário dela, mas fez questão e pediu para eu publicar. Aí vai! Só ela mesmo! rs


    "Querida Carol e seu Fiel Escudeiro!

    Bárbaro! Vc de fato consegue nos envolver totalmente e dá o maior thrilling essa sua aventura!
    A mim, particularmente deixou-me bem claro tudo o q eu não quero passar qdo for a Machu Pichu, pois tenho certeza de q
    ficaria Muchu Pucha!
    Parabéns a vcs pela empreitada! Com amor e carinho, Lúcia Vespa.
    Bjs."

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    1. Ah, que pena que ela não conseguiu postar... não sei o que se passa...

      Adorei o comentário! Com o senso de humor que lhe é peculiar!

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