segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A celebração do Natal e os padrões repetitivos

 

Essa imagem e o texto que a acompanha, postados na conta do Al Janiah (restaurante palestino e centro cultural) no Instagram (@aljaniah_oficial), foram as "gotas d´água" pra que eu formulasse e publicasse a reflexão que trago. Recomendo que você leia na íntegra o texto que eles postaram, mas basicamente nos relembra alguns fatos pouco enaltecidos na narrativa mais ampla sobre a vida de Jesus.

Essa família tão celebrada há milênios era composta por uma mãe solteira e um pai adotivo; pobres e refugiados; periféricos.

Jesus, o grande homenageado, foi um rebelde, contestador, que enfrentava o poder dominante falando sobre igualdade, justiça, amor, perdão...

2022 anos se passaram e pessoas como eles seguem sendo marginalizadas, perseguidas, assassinadas, invisibilizadas. Estamos presos nessa história.

Presos com requintes de crueldade, pois a dinâmica opressora usa de armas perversas, capturando narrativas e retorcendo-as até que fiquem palatáveis - e consumíveis. Vejam a festa que se formou em torno desse evento! E aqui não vou entrar no papinho água com açúcar de "o espírito natalino se perdeu, agora o que importa é só o consumo". Porque ao colocar as coisas assim podemos até nos esforçar por fazer diferente no âmbito individual, mas acabamos nos acomodando enquanto coletivo, afinal...


"é uma força muito maior, não temos como mudá-la"


"pra minha família é importante, então abro mão dos meus questionamentos e faço essa concessão por eles"


"eu não ligo pro Natal"


"eu me revolto com o Natal"


E assim a tradição segue... com meia dúzia de ovelhas negra, um outro tanto de indiferentes, e a grande massa dando continuidade a uma história que por algum motivo segue sendo necessária.

E que história é essa? A história da família pobre, marginalizada, perseguida; a história do rebelde que contesta o poder com palavras de justiça e amor, e é cruelmente assassinado. É essa a história que seguimos reproduzindo por milênios. A historinha paralela, com anjinhos, pinheirinhos, luzes e presentes é apenas uma distração.

Tiremos então essa distração. Observemos o que está por trás.

Ao fazer isso eu vejo um padrão repetitivo. Um ciclo que muda de cara, mas não muda de enredo.

E o que são esses padrões repetitivos? Você, que é uma pessoa minimamente desperta pro seu desenvolvimento (se não fosse, não estaria aqui...), certamente já se deparou com esse tipo de padrão na sua vida. Seja na sua história individual (a repetição de hábitos nocivos, que viram vício e prisão) ou na história daqueles que vieram antes de você (a repetição de comportamentos herdados de pais, avós e cia, que quando paramos pra analisar não fazem mais sentido, mas misteriosamente seguimos repetindo).

Pois bem, se algo segue sendo repetido isso se dá basicamente a dois fatores:

1) o aprendizado necessário ainda não foi alcançado, e assim seguimos "repetindo de ano", até aprender a matéria, passar na prova e poder mudar de fase

2) estamos rodando em automático, refazendo passos por força do hábito, sem ter consciência sobre eles - ou seja: presos em distrações

Experimente aplicar esses caminhos pros seus padrões repetitivos.

Reconhecê-los já é uma grande coisa! E isso nem sempre é possível sozinho (alô, terapia!).

Então é mais ou menos assim:

- você identifica um padrão, uma repetição

- avalia se te faz bem ou não (sim, existem bons padrões também, rs..)

- caso não faça, você faz a escolha de sair dele

- se for apenas uma questão de que você estava "rodando em automático", pronto, resolvido! Porque a luz da consciência será suficiente. Agora que você sabe, agora que você olha e enxerga, ouve e escuta, é capaz de traçar novos passos. O caminho trilhado e batido estará ali por um tempo, oferecendo uma tentação de andar por um caminho aparentemente mais fácil e recair nos velhos hábitos. Mas você está consciente e pode escolher não trilhá-lo.

- mas se for uma questão de que o aprendizado ainda não foi alcançado, então pode ser que dê um pouquinho mais de trabalho... afinal, existe uma tarefa a ser feita! Então arregace as mangas!!! Você já decidiu que esse padrão te faz mal; você já decidiu que não o quer mais em sua vida! Larga mão de ser frouxo e faz o que precisa ser feito! Vai atrás de ajuda, se mexe, sai do lugar, chacoalha essa poeira. Não é fácil, ninguém disse que seria... mas quais são suas outras escolhas?! Encare a realidade e pare de se distrair  com bobagens (de novo as distrações, tá vendo? Elimine-as e terá seu caminho claro). O golpe tá aí, cai quem quer...

E a humanidade vem caindo nesse golpe... no golpe de romantizar a pobreza e a opressão; no golpe de enaltecer a meia dúzia que consegue se safar e fechar os olhos pra multidão massacrada; no golpe de "seja feliz e grato pelo que você tem, celebre com os seus, você merece". Merece o que?! Merece viver nesse mundo cheio de sofrimento? Merece se fechar em pseudo-fortalezas como um avestruz que enfia a cabeça num buraco? Merece deixar de ir a lugares por medo de que as vítimas da opressão o façam de vítima?

Pois trago uma boa notícia: não, você não merece!

Você não merece se submeter a essa sub-vida em troca de presentes e uma mesa farta. Você é mais que isso! Você não se vende... nem por muito e nem por pouco. Você não se vende.

___


Eu estou falando pra "você", mas saiba que escrevo olhando no espelho.

Esse ano o Natal atingiu uma saturação em mim. Não cabe mais. Chega!

Em paralelo, estou vivendo uma fase de redefinir rumos da minha vida, traçar metas pro ano que começa... e vou compartilhar uma delas aqui, tornando-a pública e fazendo disso uma forma de reforçar meu comprometimento.

O Natal de 2023 vou dedicar a estar com os pobres, refugiados e marginalizados. Vou me proteger de distrações e me empenhar em algum trabalho voluntário. Talvez eu ainda precise assimilar as ideias de Jesus, pra quem sabe poder sair desse padrão e partir pra novos aprendizados...


sexta-feira, 1 de abril de 2022

Leveza e Profundidade

Se você acha que é um paradoxo,

vou te dar uma dica:

olha pra cima

e aprofunda no céu!


Aprofundar não é (só) afundar

Aprofundar com leveza é flutuar livremente

Nas águas e nos ares


Leveza é ar e água

Mas parece que a gente aprende que leveza é sinônimo de superficialidade

leviano

Fico com Lenine: a leveza está na delicadeza

Observemos a leveza através da delicadeza

e aprofundaremos


A delicadeza da presença

A delicadeza da atenção

A delicadeza da disponibilidade

A delicadeza do interesse


A leveza que aprofunda é

A leveza que cria vínculos

A leveza que é livre

A leveza que é também compromissada,

Porque é atenta


A profundidade que pesa,

que puxa pra terra,

são pés pesados tropeçando nas pedras dos caminhos

As pedras do cotidiano

A lista de compras

Os boletos, o extrato, a fatura

O filho doente

A obra que atrasa

O chefe que resmunga

O empregado que falta

O carro que quebra


As pedras dos não ditos

As expectativas que não viram perguntas

As perguntas que ficam sem respostas

As respostas tortas,

- o desalinho entre o que sai e o que está dentro


Mas quem tropeça são os pés

As pedras são o que são

Pés leves tropeçam menos,

Porque flutuam, dançam

Porque tem liberdade,

saltam e até voam

aprofundando

No céu


quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Amiga da minha mulher



Ah, Seu Jorge! Essa voz, esse suíngue, essa elegância! Cantando "Carolina" e fazendo tricô, então, meu coração derrete. Está sempre nas minhas playlists animando corrida, trabalhos domésticos, viagens...

E foi num desses momentos de corpo ocupado e mente divagando que a música "Amiga da minha mulher" me chamou a atenção.

Primeiro, por ser a mais ouvida do cantor no Spotify (a letra é de autoria de Gabriel Moura, parceiro do Seu Jorge em mais de 50 canções), e depois por me propor um exercício sobre questões de gênero. Sim, car@ leitor/a/e, é preciso estar atente e forte! (eu busco usar linguagem neutra, mas esse texto vai ser bem binário e hétero e você já vai entender por quê).

O exercício não é novidade e nem fui eu que inventei. É um mecanismo simples pra entender se a situação é machista. Basta inverter papéis, misturar gêneros e avaliar se o resultado é o mesmo. Divertidíssimo! Quer ver?!


Imagina que a história, em que a amiga da esposa se insinua sensualmente para o narrador, ao invés da configuração "amiga da minha mulher", falasse da "mulher do meu amigo"


vai imaginando... "ela é mulher do meu amigo, mas vive dando em cima de mim (...) de vez em quando fico admirando, é muita areia pro meu caminhão"


Imaginou?!

Continua divertida e engraçada? Continua "brincadeirinha"?


Não, definitivamente, não. Amiga da mulher a gente dá risada, mas mulher do amigo, EITA, aí a coisa ficou séria.


E se - prepare-se: e se fosse uma mulher cantando e a música fosse "amigo do meu marido"?! Ou ainda: "marido da minha amiga"?!


Ui, fomos longe demais! Caos na Terra! Já não cabe mais em "músicas para churrasco", pelo menos não nos "churrascos de família". Quem sabe caiba na categoria funk pornográfico.


Pois bem, isso é machismo, minha gente! Quando a gente inverte e mistura os gêneros e os resultados mudam completamente.


Por que falar da "amiga da mulher" é engraçadinho, mas falar da "mulher do amigo" é o mais profundo mal-caratismo?

Por que um homem falando que "a carne é fraca" nos passa quase que despercebido, mas uma mulher dizendo a mesma coisa é a mais baixa das putarias?


PORQUE VIVEMOS EM UMA SOCIEDADE MACHISTA!

Porque para um homem, "as mulheres" são seu domínio, a não ser, é claro, que tenha outro homem envolvido. Veja: o limite não é a mulher em si, nem as inter-relações com essa mulher, enquanto forem permeadas por outras mulheres. O limite é o território do outro macho, que inclui suas respectivas mulheres-domínio. Isso não é exagero e isso não é brincadeira. Basta olhares (e ouvidos) atentos pra ir se dando conta desse mecanismo.

E no caso da mulher cantando? Ah, aí é muita audácia, né? Como assim, uma mulher que manifesta desejo? Como assim a mulher vai agora declarar estabelecer domínios e territórios mulher-homem? Ah, claro, se fossem duas mulheres "brigando" por macho, aí sim, aí é totalmente aceitável, porque, afinal, os seres dominados se degladiam pela atenção, caprichos e mimos de seu dominador. Você pode achar que estou forçando a barra, e talvez esteja, a título de exercício didático. Na prática não é bem assim. É muito pior! Porque muitas vezes é velado, a gente não se dá conta, mas está jogando exatamente esse joguinho do patriarcado.



O que eu adorei em sacar esse exemplo é que ele extrapola moralismos, porque ele já parte de uma condição de imoralidade e isso deixa o machismo ainda mais evidente. A questão não é moral. Não estamos discutindo aqui a questão específica do adultério. Porque se o cara declara que tem uma queda pela amiga da mulher, é óbvio que isso arranha valores referentes a casamento, arranha valores referentes a amizade, mas passa como uma "brincadeira", tranquilamente aceita. Socialmente conseguimos rir e nos divertir com isso.

A coisa só complica nas misturas de gênero que propus. Perde a graça, vira tabu, vai pro gueto. O problema claramente não é o adultério.


Então a questão é essa: igualdade de direitos. Inclusive na putaria!