era uma vez...
... uma mulher de corpo forte e sereno. Exibe a tranquilidade de quem já viveu o suficiente para saber que "vai passar" e a vitalidade de quem ainda se permite tentar mais uma vez. Uma mulher esguia, de cabelos escuros, lisos e longos, mas presos. O rosto tem suas marcas e os olhos são de quem não deixa escapar nada; sua boca expressiva esboça sorrisos que facilmente se transformam em risadas; e dali saem palavras contundentes. É bom saber disso... você pode até não gostar muito do que ouvir, mas lá no fundo saberá que trata-se da mais pura verdade.
Ela vive em uma casa ampla, com janelas generosas e três portas - ela gosta de ter opções, e caminhos, e horizontes.
Com ela, seus homens; e um bicho, fêmea como ela, guardiã e amiga.
Essa mulher gosta de sopas e hoje resolveu fazer uma canja. Foi até a horta, mesmo sendo noite. Aproveitou para olhar o céu estrelado e se sentir menos só, na companhia das estrelas. Colheu seus temperos e foi para o fogão, que já estava com labaredas empurrando a fumaça chaminé acima - tarefa de homem trazer a lenha e acender o fogo. Picou os legumes, cultivados pelas vizinhas, fortes e serenas como ela. Tê-los ali era uma forma de estarem juntas, pois, embora vizinhas, viviam distantes no espaço, separadas pelas montanhas, riachos, florestas; mas unidas no coração pelas luas, pelas proles, pelas histórias compartilhadas ao pé do fogo e das cachoeiras.
Mas sim, a canja. Um pouco disso, uma pitada daquilo, e ali se faz magia. Uma taça de vinho acompanha. O fogo, a água, a alquimia que vai pra mesa, e pros corpos. Que nutre de minerais e também de ânimo - ânima - alma.
Suas sopas sempre são panelões... talvez na esperança de uma visita que chega pro jantar, entrete as crianças e depois lava a louça enquanto pai e mãe colocam os filhos na cama, para depois os adultos poderem se estender em conversas regadas a vinho ao pé da lareira. Esse, aliás, é um sonho que ela cultiva, e que parece ter flores mais demoradas e delicadas que a camomila que ela plantou há meses e continua apenas verde. O sonho de ter companhias que ajudem a tornar a vida menos árida... companhias que ajudem a tornar os infinitos afazeres domésticos menos duros, companhias que ajudem a dissolver os embates com as crianças, companhias que, por mais paradoxal que pareça, possibilitem momentos de solitude e silêncio.
Porque parece que existe algum número mágico de pessoas necessárias para fazer uma casa funcionar sem exaurir ninguém; parece que existe algum número mágico de proporção entre adultos e crianças (e idosos, e adolescentes) para que todos possam aprender saudavelmente com todos. Ela sabe que esse número mágico é maior que dois adultos; que essa proporção mágica é diferente de dois adultos e duas crianças. E que até mesmo o cachorro talvez careça de companhia.
E ela sabe também que para esse sonho, diferente da camomila que já está plantada, ela não tem ainda nem sementes.
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