quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Chuva dos olhos

Acordei de madrugada com o barulho da chuva. Uma chuva generosa, com relâmpagos, trovões e muita água. Já de manhã, quis chorar. Nem tristeza, nem alegria, mas apenas vontade de participar do dia molhado.

Como que para justificar minhas lágrimas avulsas de um sentimento compreensível, citações começam a chover em minha mente:


As lágrimas são um rio que nos leva a algum lugar. O choro forma um rio em volta do barco que carrega a vida da alma. As lágrimas erguem seu barco das pedras, soltam-no do chão seco, carregam-no para um lugar novo, um lugar melhor (Clarissa Pinkola Estés em Mulheres que correm com os lobos).



Arrepender-se nunca mais
Amar nunca é demais
Sofrer faz parte desse jogo
Amor é fogo, pode queimar
O choro é um prisma luminoso
Meu coração não tem mais medo de chorar

Lágrima é água, é puro sal
E foi desse cristal
Que a vida começou no mar
Viver é tempestade e calmaria
Sofrendo a gente aprende a navegar, um dia

Bebado samba - Paulinho da Viola
Um mestre do verso, de olhar destemido,
disse uma vez, com certa ironia :
"Se lágrima fosse de pedra
eu choraria"
Mas eu, Boca, como semrpe perdido
Bêbado de sambas e tantos sonhos
Choro a lágrima comum,
Que todos choram
Embora não tenha, nessas horas,
Saudade do passado, remorso
Ou mágoas menores
Meu choro, Boca,
Dolente, por questão de estilo,
É chula quase raiada
Solo espontâneo e rude
De um samba nunca terminado
Um rio de murmúrios da memória
De meus olhos, e quando aflora
Serve, antes de tudo,
Para aliviar o peso das palavras
Que ninguém é de pedra


Milágrimas - Itamar Assunção
Em caso de dor, ponha gelo
Mude o corte do cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema, dê um sorriso
Ainda que amarelo
Esqueça seu cotovelo
Se amargo for já ter sido
Troque já este vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério, deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada milágrimas sai um milagre
Em caso de tristeza vire a mesa
Coma só a sobremesa
Coma somente a cereja
Jogue para cima, faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra apenas, viva apenas
Sendo só fissura, ou loucura
Quem sabe casando cura
Ninguém sabe o que procura
Faça uma novena, reze um terço
Caia fora do contexto, invente seu endereço
A cada milágrimas sai um milagre
Mas se apesar de banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas, três, dez, cem mil lágrimas, sinta o milagre
A cada milágrimas sai um milagre



Coleciono milagres. O barco que carrega a vida da minha alma navega sobre águas profundas. Em tempestades e calmarias. Quando as palavras são pesadas, choro.

E então, a chuva abranda. As lágrimas começam a secar no rosto.

Mas, antes do ponto final, chega, inesperada, uma nova rajada:

O Dia Deu em Chuvoso - Álvaro de Campos
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.



Sim, o dia deu em chuvoso!

7 comentários:

  1. Ah, chuva generosa e inspiradora... Gostei muito! Beijo!

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  2. Desculpem, mas de lágrimas cancerianos sabem muito. De todos os tipos, de não-motivos, de muitos porquês. Os poetas e os sábios conseguem entender e traduzir nosso verdadeiro amor por elas. De tudo o que você selecionou tão bem, eu só não conhecia o trecho do sua grande leitura do momento, Mulheres que correm com lobos. É maravilhoso ver alguém colocando por escrito, em alta definição, o que sentimos lá no fundo, por experiência! Obrigada, filhalinda, por captar e irradiar tanta beleza!

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  3. Obrigada mãe e Clarissa.

    Mãe, vou te passar esse livro em breve ;)

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  4. Muito bom, Cá.
    Sempre que chove penso em Álvaro de Campos...

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  5. bonito!

    um beijo

    Rosaura Soligo
    http://chiarosscuro.blogspot.com/

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  6. muito bom, Carol. Aliás, você tem se revelado uma cronista e tanto, heim?

    ah! e quando li o início do texto foi inevitável pensar: ainda bem que Carol não mora aqui, ia viver chorando ... rs (ainda mais nessa época, a estação "chove o dia todo" - em contraposição à outra, em que "chove todo dia" .. rs)

    beijos

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  7. Obrigada Ana, Rosaura e Ana!

    Bom Ana (baiana, rs...) esse texto foi bem "sem vergonha", uma colcha de retalhos. Às vezes eu acho que já tem tanta coisa (muito boa) escrita que o mundo não precisa das minhas palavras, mas sim que eu mostre e ressalte essas coisas boas já escritas. E por falar nisso, como diz o Milton:

    "certas canções que ouço, cabem tão dentro de mim, que perguntar carece: como não fui eu que fiz?" =D

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