domingo, 19 de maio de 2024

... eu também vou reclamar

Vira e mexe vejo recomendações de "parar de reclamar" pra ter uma vida feliz, saudável, próspera, bem sucedida. E eu concordo que a "energia" da reclamação, dos resmungos, vai na contramão desses ideais. Mas algo que pouca gente conta é que não dá pra ser feliz, saudável, próspero e bem sucedido 100% do tempo. E o mais importante: nos momentos em que não estamos vivendo a glória da plenitude, não significa que falhamos, não significa que tudo foi por água abaixo. Significa simplesmente que está tudo caminhando NORMALMENTE na sua vida, porque a vida é assim, é feita de altos e baixos, de ciclos que se sobrepõem, de misturas que vão além das dualidades e que incluem toda uma gama de nuances.

Estar infeliz é normal; adoecer é normal; ter prejuízos é normal; fracassar é normal. O anormal, o preocupante, pode estar relacionado com frequência e intensidade, com situações crônicas. E o ponto de alerta aqui é que nós, seres humanos, somos bastante adaptáveis e isso pode ser muito bom pra encarar situações extremas, mas é perigoso, porque a gente se acostuma. O ser humano se acostuma a viver na infelicidade, na doença, nos prejuízos, nos fracassos e vai passando a achar que "a vida é isso". Então vem as recomendações de buscar uma vida mais feliz, mais saudável, mais próspera, mais bem sucedida.

Aí quem consegue comprar a ideia, passa a revisar hábitos, indicadores, até valores e implementa mudanças na vida, tornando-se mais feliz, mais saudável, mais próspero, mais bem sucedido. E vem de novo o perigo de se acostumar! A gente se acostuma com a "escalada" e com o modo de ser que busca esses ideais, e se não aparecer ninguém pra dizer "agora tá bom, descansa um pouco, reavalia a trajetória", quando nos damos conta, a busca pela felicidade nos torna infelizes, a busca pela saúde nos adoece, a busca pela prosperidade nos quebra, enfim, a busca em ser bem sucedido fracassa.

E nesse contexto eu venho aqui trazer uma reflexão sobre o ato de reclamar.

Reclamar é, basicamente, pedir empatia. Quando reclamo quero ouvir de volta: "poxa, verdade! Que chato né?". Quando reclamo, a última coisa que quero ouvir é "ah, para com isso, essa atitude não vai resolver as coisas" ou ainda pior: "ah, você tá chorando de barriga cheia!" e todas as variações, que incluem minimizar meu incômodo me contando de situações "piores que a minha".

Reclamar é expressar uma insatisfação NOR-MAL, porque é impossível estar satisfeito o tempo todo (e quem aparenta estar não me convence, porque aposto que lá no fundo, ou em outro cenário, tá cheio de insatisfação).

Isso quer dizer que você é obrigado a oferecer empatia toda vez que uma pessoa vier reclamar pra você? Claro que não.

O que você pode fazer é começar perguntando-se: "estou disposto a oferecer empatia a essa pessoa agora?". Se a resposta for sim, entre na brincadeira, aproveite a oportunidade para exercitar seu corpo empático. Se a resposta for não, busque uma forma de informar a pessoa que você não está com essa disposição (o que é um ótimo exercício também!). E não espere acertar de primeira... é uma musculação da comunicação. Se você for erguer cargas muito pesadas no começo vai se arrebentar.

E quando quem está reclamando é você? Permita-se reclamar. Mas busque observar a atitude do seu interlocutor. Se for uma atitude de empatia, aproveite pra receber esse presente e, como diz a boa etiqueta, ao final agradeça. Quando oferecemos empatia e somos reconhecidos por isso, é algo que nos nutre, é algo que fortalece o corpo empático e vai permitindo que possamos oferecer mais e mais.

Se, por outro lado, a escuta não for empática, infelizmente será algo a ser acrescentado à sua lista de reclamações... e não adianta insistir com essa pessoa que não quer ou não pode te oferecer empatia nesse momento. A você, que precisa reclamar, sinto muito... não será dessa vez. Sei que muitas vezes mesmo assim a gente reclama e a atitude não-empática do interlocutor só piora a situação e ao final da conversa provavelmente nosso estado de espírito não estará do jeito que gostaríamos. Se houver consciência, logo veremos que é um caminho que não vale a pena.

Consciência. Também é um músculo a ser exercitado.

A consciência nos protege não de "não reclamar", mas de identificar quando e com quem podemos reclamar. Porque sempre teremos reclamações. Faz parte da vida.


PS - recomendo ouvir a música do Raul Seixas, que inspirou o título do texto!


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