segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Elis e Tom - o documentário

 Assisti ontem e ainda estou digerindo... mas que decepção...

Pra uma crítica mais técnica recomendo esse texto, cujo autor desconheço e não estou com tempo pra pesquisar, mas concordo com grande parte do que ele aponta.

Nesse âmbito da parte mais "superficial", a sensação é que o documentário não entrega o que promete. Por exemplo, não entendo por que deixaram músicas do álbum de fora e incluíram outras, de outros contextos. Ok, pra mim nunca é demais ouvir Elis (nunca!) e mesmo Tom, mas o documentário perdeu o foco, e quando perde-se o foco, perde-se a alma.

Sobre perder o foco, as falas enveredam por especulações levianas e extremamente desrespeitosas sobre a vida da Elis. E aí a gente entra num aspecto menos "técnico", menos superficial e vamos navegar pelas entrelinhas da narrativa apresentada.

Pra começo de conversa: um bando de homem.

Aparece uma única mulher nas entrevistas, filha do Tom Jobim, que tinha 16 anos quando o álbum foi gravado e contribui com um olhar infantilizado ("eu não lembro direito, perguntei pra minha mãe...." Ah, gente, faça-me o favor!).

Quanto aos bastidores criação, direção, produção, fiz questão de ficar até o final pra ver os créditos e vi dois ou três nomes de mulher, na produção executiva, controladoria e alguma outra tarefa operacional. Aff...... mulheres agilizando o rolê pros homens pavonearem e colherem os louros. E pior: tecerem conjecturas sobre a vida de uma mulher. E ainda pior: de uma mulher que nem está mais aqui pra falar por si e expor seu ponto de vista (como se isso fosse permitido. Não seria, ainda não é, e essa constatação é algo que me derruba, me entristece, me revolta! Mas, Elis, não foi em vão. Eu não vou ficar calada diante de tamanho desrespeito. Não por você, que já foi, está em outra, mas por nós que seguimos essa linhagem de mulheres que lutam co-ti-di-a-na-men-te pra termos voz e espaço para sermos o que somos).

Interessante notar que se o documentário tivesse como resultado o que se propôs a fazer, as questões de gênero poderiam ter passado sem grandes questionamentos. Poderia ser um filme que mostrasse os bastidores do álbum, que retratasse a genialidade de cada um e que fosse lindo. Pronto, seria lindo. Teria espaço pra mostrar as incompatibilidades, como um tempero de cada genialidade geniosa. Seria lindo.

Mas não foi esse o caminho escolhido. Fico com a sensação de que o roteiro foi bem intencional no objetivo de causar polêmica e fazer fofoca. E de ser apelativo também, incorrendo em incoerências absolutamente injustificáveis, como quando mostram Elis Regina no caixão (?!), abordando de forma  sensacionalista a sua morte, incluindo o fato na parte do documentário destinada a retratar a Elis ANTES da gravação do álbum. Como assim?! Pois é, como assim?!

Ah, e foi mencionada a morte de Tom Jobim? Nem de longe... ele segue imortal.

É brutal a diferença com que tratam as imagens de cada um deles.

Tom Jobin fica num lugar quase que inacessível a qualquer julgamento, acima de qualquer possibilidade de se questionar suas escolhas, seus posicionamentos - por mais que tenham colocado ênfase na "supremacia" dele em relação ao César Camargo Mariano. No fim, a sensação que fica é "tá tudo certo, é isso mesmo, Tom Jobin tinha todo direito de querer mandar na porra toda, e Mariano foi um gentleman, demonstrou humildade de discípulo. Aplausos para os dois".

Já Elis é retratada como instável, imatura, insegura, vaidosa - uma vaidade totalmente diferente da do Tom, porque a ele é dado o direito de ser vaidoso, mas a ela, não. A vaidade no homem é resultado de seus méritos; a vaidade na mulher é capricho.

E é claro que fazem isso de forma dissimulada. Essa é uma das artimanhas do machismo estrutural. Eles jamais afirmariam de forma declarada que a Elis era instável, imatura, insegura e vaidosa, com toda a carga pejorativa de cada termo. Eles fazem isso à partir de uma superioridade masculina, aquela mesma que calmamente nos chama de loucas quando berramos (as que conseguem) em resposta a toda espécie de atrocidade que eles cometem contra nós.

Eu teria tanta coisa mais pra dizer sobre esse filme, sobre a forma com que trataram a Elis no documentário (que pode ser inclusive só uma janelinha de como a trataram em vida).... sem contar toda a parte das projeções das minhas dores de mulher, mãe e artista (?! - sobre meu lado artista a gente conversa outra hora...). Impossível não pensar como estaria sendo pra ela estar naquele contexto, sendo mãe de duas crianças pequenas e com um marido que era ao mesmo tempo seu "chefe" (ou vai me dizer que o arranjador e pianista, sendo marido, não ocuparia algum cargo de chefia perante ela?!) e que estava com seu orgulho sendo profundamente e constantemente ferido pelo macho alfa do rolê. Não vou cair na armadilha de supor o que ela sentia com relação a cada um desses componentes da complexa fórmula "Elis Regina em Elis e Tom", mas que não estaria sendo fácil, ah, isso não estava mesmo!

Enfim.... tenho louça pra lavar, almoço pra fazer, enfeites de bazar da escola pra bordar, uma aula pra preparar e uma viagem pra encaminhar. O tempo me escorre da mesma forma que o sangue entre minhas pernas. Esses são alguns dos - muitos - ônus de ser mulher. A gente não tem um instante de paz. Urge estarmos, homens e mulheres, cientes disso.

>> em 2012 eu escrevi um texto aqui inspirado por uma música do Elis & Tom (que não aparece no documentário......). Dá uma espiada lá... é bonito :)

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