A antroposofia me ensinou a usar imagens como auxiliares para traduzir sentimentos, processos, mecanismos. Quando a descrição com palavras literais não alcança a essência do que queremos dizer, lançamos mão de uma imagem, uma analogia, uma alegoria. Aí reside o potencial curativo das histórias e de toda a sorte de mitologias.
Claro que toda alegoria tem suas limitações. Se ao usar uma imagem como apoio para descrever um processo, formos à fundo na imagem, buscando chegar no seu aspecto mais literal, o apoio se dissolve. Não é essa a ideia. Esse mecanismo funciona muito bem quando estamos atentos a que ele se propõe, que está mais para inspiração (ar) do que para representação (terra).
Outro aspecto a considerar quando lidamos com imagens é que, à medida que o processo se transforma, a imagem também se transforma - e essa transformação pode tranquilamente virar uma transfiguração, ou seja, a imagem inicialmente usada não faz mais nenhum sentido, e outra, completamente diferente, aparece, agora mais afinada com a nova fase do processo. Trocar de imagem não constitui incoerência... ou talvez sim... mas aí estamos falando das incoerências inerentes à vida. Tudo muda... enxergar incoerências e paradoxos são pistas de que a vida vive.
Feito esse preâmbulo, quero falar de uma imagem que me apareceu, após passar dois dias à bordo de um veleiro, e mais três mareada em terra (o primeiro, literal, físico, e os outros dois num mareamento emocional). Mesmo nesse mareamento todo, mantive meditação, corrida, cuidados com o corpo, e deixei de lado o que pude das tarefas, afazeres domésticos, me dando tempo e espaço.
No 4o dia, já sem o mareamento, durante a corrida, veio a imagem do corpo enquanto âncora. Ancorar um veleiro é uma tarefa meticulosa. Inclui avaliar profundidade num raio seguro e as possibilidades de vento durante o período que espera-se ficar ancorado; inclui lidar com um artefato bem pesado, mais sua corrente, igualmente pesada (alguns barcos contam com guincho elétrico, outros não...); inclui um procedimento de manobra, usando motor, pra fixar a âncora (quando não tem motor não sei como faz...). Desancorar também pede atenção, meio que fazendo todo o procedimento ao contrário.
A âncora permite ao barco descansar. E quando falo "barco", refiro-me a toda a tripulação do barco... A âncora, se manejada de forma cuidadosa, confere segurança ao barco. Se tiver algum problema com a âncora (ou corrente, ou guincho - estou chamando de "âncora" esse conjunto que permite o ancoramento), pode-se buscar uma poita, um píer, ou até mesmo outro barco que esteja seguramente ancorado. Mas todas são soluções provisórias... o esperado é que cada barco tenha sua própria âncora, em perfeito estado de funcionamento.
A âncora geralmente fica escondida num porão, quando não está sendo usada. E quando em uso está lá no fundo, presa ao lodo. Ou seja... seu protagonismo não está na sua aparência nem na sua "aparição", mas sim no seu funcionamento.
Nessa imagem que me veio, partindo da âncora, se ela é o corpo (corpo físico, no caso), as velas são o corpo emocional, os instrumentos de navegação são o corpo mental, a tripulação do barco constitui o corpo espiritual. O próprio barco seria a experiência terrena. O motor vejo como os "aditivos" (explicarei melhor). O mar, o vento, o sol, as ilhas e continente e tudo mais o que surgir são a vastidão do cosmos, do tempo, do infinito, das experiências. E outros barcos são... outros barcos!
E olha que coisa doida... coloquei o corpo físico numa imagem que fica escondida (o que me faz alinhar o corpo mais à funcionalidade do que à estética, o que pode até convergir, mas não é isso que importa)... coloquei as emoções nas velas (que ao mesmo tempo é o que define um veleiro, mas que não são essenciais para navegar - se existe um motor). O motor então são os nossos apoios da vida contemporânea, que custam dinheiro, que geram lixo e resíduos, mas que também nos conferem algum conforto e segurança. Sem o motor o veleiro também se desloca... mas aí sim as velas são fundamentais, assim como saber manejá-las.
Agora pense comigo... um veleiro que nunca levanta suas velas é algo bastante triste. Se você não as levanta porque não sabe manejá-las, nunca aprenderá, porque não é algo que se aprende lendo ou assistindo vídeos. Se você pode contar com alguém mais experiente, certamente aprenderá em segurança, mas precisa cuidar para que a experiência de quem acompanha não ofusque sua prática de aprendizado. Se você quiser se arriscar a aprender sozinho, convém escolher lugares seguros e investir na instrução prévia (que não resolve, mas ajuda...). Errar ao lidar com as velas pode te custar as próprias velas (que rasgam), o mastro (que quebra), o barco (que afunda)... e talvez a vida (que enquanto experiência terrena, acaba). E mesmo com esses riscos todos, muitas e muitas e muitas pessoas aprendem a velejar e velejam e dão voltas ao mundo.
Os outros elementos da alegoria vou deixar para que você brinque com eles, fazendo as analogias que fizerem sentido na sua vida... pode incluir outros também... o bote, os coletes salva-vidas... pode detalhar a tripulação (no nosso caso tinha um comandante pouco experiente, um mestre, amadores, crianças). E o leme? A roda de leme? Fazem parte dos instrumentos de navegação... que podem ser bem tecnológicos (e pifar) ou bem analógicos (e dar um trabalho danado). Tem os cabos todos, o guarda-mancebo, as bombas de água (água doce e salgada)... e os componentes de uma "casa": cozinha, banheiro, quartos, sala... um veleiro é um prato cheio pra brincar com as imagens! Mas é claro que essa alegoria é "minha"... ela existe à partir da minha experiência. Pode ser que pra você não faça sentido nenhum...
Eu só sei que num momento de confusão emocional, as velas por aqui panejaram; os instrumentos de navegação ficaram meio doidos (pane elétrica? Triângulo das Bermudas?); o motor ficou de boa e foi ele (justo ele, que vira e mexe me aparece como vilão) que me ajudou a lidar com as velas e recolhê-las. E então lembrei da âncora, que estivera ali o tempo todo, sossegada, só esperando seu momento. Havia luzes no continente, sinalizando uma baía segura, o ancoramento foi feito, o barco descansou.
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