terça-feira, 31 de agosto de 2010

Drão

Eu estava dormindo quando ouvi batidas na porta. "O que o Spinafre quer a essa hora?!", pensei. A contragosto e muito sonolenta, abri a porta. Ao ver minha mãe não teve jeito de não pensar em coisa ruim, afinal, o que seria tão importante para ela vir de Bragança a Piracicaba no meio da madrugada?

"O Du sofreu um acidente", disse ela com os olhos cheios d´água. Como reflexo involuntário e desprovido de raciocício perguntei: "E como ele está?!". O olhar e o aceno negativo da cabeça, seguidos por um longo abraço dispensaram qualquer palavra. Ele não estava.

Essa cena se deu há exatos 10 anos. Dez anos! Caramba... se, ao mesmo tempo, as imagens e sentimentos são tão vívidos na minha memória, também parece que esse arquivo faz parte de um passado muito longínquo e distante, quase como um sonho.

O Du foi meu primeiro namorado. Ficamos juntos por intensos 19 meses e talvez estivéssemos juntos ainda hoje... como saber? A primeira vez que ouvi falar dele foi pela minha mãe, que chegou em casa entusiasmada, contando que tinha um aluno que ouvia a Rádio USP! E era mesmo motivo para entusiasmo, pois a escola onde ela lecionava não tinha lá um público cheio de cultura... isso bastou para que os dois descobrissem as afinidades musicais, e muitas outras.

Pouco tempo depois eu o conheci pessoalmente, só que na casa do meu pai. Ele havia chegado até lá via amigos em comum e não demorou para que ficasse amigo do meu pai, através das afinidades com cachoeiras, matos, trilhas e acampamentos. E também não demorou para que as nossas afinidades viessem à tona. Foi um verão delicioso, intenso, cheio de banhos de chuva, caminhadas, estrelas e Chico Buarque. Mas nem tudo foi um mar de rosas pois minha mãe - que já foi bem maluquinha na juventude, registre-se o fato - não queria que a gente viajasse juntos, que saísse por aí sem destino e sem hora pra voltar. A rebeldia não foi pouca... mas nada que não tenha sido resolvido, afinal, o rapaz em questão ouvia a Rádio USP, rs...

O Du foi uma pessoa muito especial. Fazia maluquices com sua bicicleta, dizem que jogava bola muito bem - embora eu nunca tenha visto... -, tinha um coração do tamanho do mundo, me fazia enxergar tantas coisas: "você é uma péssima observadora!", queria ser ornitólogo, adorava o Raul Seixas e me contagiou com a paxão por São Thomé das Letras. Um dia, meio de bobeira, perguntei pra ele o que ele queria ser na próxima encarnação, e ele respondeu: "sei lá, nuvem, vento, rio...". Às vezes acho que seu desejo foi atendido...

E acho que por causa dessa "vontade etérea", apesar de ele ter sido uma pessoa tão especial na minha vida, eu não falo sobre ele. Queimei todas as cartas que trocamos e também as fotografias. Não tenho mais contato com a família dele e acho que é melhor assim. Muitas pessoas que me conhecem, mesmo algumas bem próximas, certamente vão se espantar ao ler esse relato.

Mas hoje me deu vontade de falar, de compartilhar as coisas que aprendi, pois isso sim vale a pena ser compartilhado. Não tem como passar ileso por uma perda como essa, mas o tempo nos faz colocar os fatos em perspectiva. Se na época eu me torturava com perguntas "Por quê?!", "Por que eu?!", "Por que ele?!"; se o Rio de Piracicaba quase jogou água pra fora, de tantas lágrimas dos olhos de alguém que chora; não demorou muito para que a vida tomasse seu rumo.

Muito antes do que eu imaginava, surgiu na minha vida uma nova pessoa, um menino lindo - por dentro e por fora, um gato de olhos verdes! É inútil comparar pessoas, pois cada um é tão único que torna-se incomparável e insubstituível, mas o Paulo Cesar é tão amor da minha vida, tão "alma gêmea", tão "o que eu queria ser se fosse menino", que a única coisa que posso dizer é que sou uma pessoa de muita sorte, porque tive o privilégio de ter dois grandes amores na vida, e detalhe: sem que um atrapalhasse em nada o outro ;)

A marca do que foi vivido fica, como uma cicatriz, não tem como esquecer - o Digão fala que tatuagem é uma cicatriz bonita... em outubro o sol que tenho nas costas também vai fazer 10 anos...

Sou muito grata às pessoas que me ajudaram a situar toda essa história, sou orgulhosa de mim mesma por ter superado e aprendido com uma coisa que para muitas pessoas fica apenas no plano da "tragédia". O luto é essencial, e leva tempo, no meu caso foram uns dois meses. Mas depois, bola pra frente que atrás vem gente! E como vem!

5 comentários:

  1. Oi Flor, depois de ler o texto fiquei uns dias pensando, pensando e pensando também no que eu poderia te dizer... e sinceramente não há muito para falar. Agradeço por você compartilhar algo tão profundo e transformador e pelo exemplo. Que lindo você celebrar todos os amores que a vida te trouxe!
    Te admiro muito, um abraço bem espremido, sua afilhada te manda um sorrisinho!
    Carol

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  2. Oi Flor, obrigada!

    Essa semana acho que vou conseguir ver ao vivo o sorrisinho fofo da Clara!

    Nos abraçaremos em breve, beijo!

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  3. Li com uma semana de atraso; chorei como há 10 anos não chorava, mesmo sabendo, hoje, que "tudo é perfeito"

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  4. Pois é Ana, tudo é perfeito mesmo!

    A décima norma ética do Yôga é Íshwara Pranidhána, que quer dizer auto entrega... é basicamente saber que tudo é perfeito e "deixar rolar". Claro que tem as outras nove normas éticas a observar, e isso ajuda bastane a ter a tranquilidade de saber que "fiz tudo o que eu podia"...

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  5. Filha,
    já li e reli quatro vezes e em todas choro e fecho, sem palavras.
    O motivo do choro muda a cada vez, mas a emoção de você ser a pessoa que é, inclusive por ter passado pelo que passou, sempre volta. Não escapo de ter orgulho e da alegria de estarmos juntas nesta vida, mesmo através das lentes do meu amor de mãe. Você e o Paulo Cesar são muito abençoados por terem um ao outro!
    Mamãe

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