sábado, 18 de junho de 2016

Cadê as mulheres?

Esses dias fui a um show. Fazia tempo que não saía à noite pra ouvir música boa e usufruir do conforto e da beleza de um Sesc, estava muito feliz!

Auditório lotado, as luzes se apagam, uma voz anuncia a grande atração da noite. As cortinas se abrem, a banda começa, o coração bate forte, ah que coisa boa! Mas... peraí... começo a contar: um, dois, três, quatro... catorze. Catorze homens no palco e ainda havia mais um, a grande estrela, pra entrar. Nenhuma mulher. A constatação me incomoda. Algo involuntário, inesperado.

Fico com um certo bode, mas tento curtir a música, realmente muito boa.

E então começo a enxergar as mulheres no palco. Ao lado de cada um daqueles homens, uma mulher. Uma delas, bem jovem, carrega um recém-nascido e se perde entre esse amor infinito e sua identidade diluída no leite que verte de seus mamilos calejados; outra, põe os filhos pra dormir e se acomoda num confortável sofá pra um momento de descanso com sua série favorita; mais uma surge, já marcada pelos anos e pelas concessões que fez para que o marido se dedicasse com tanto afinco à sua arte... e assim foi. Uma a uma, fui vendo esses vultos, essas histórias, e meu bode só fazia aumentar. Até apareceu uma muito bem sucedida em sua área, alguma pesquisa acadêmica talvez, mas não foi suficiente pra que a pergunta "cadê as mulheres no palco?" se calasse.

Aí entra a estrela da noite e a música que canta fala da mulher que reclama, que faz as coisas  do jeito que ele não gosta, não quer. Nem vou analisar, mas tinha que citar!

As músicas se sucedem e então consigo ver a mulher ao lado dele. Uma grande estrela que já se foi, que se foi muito jovem, que cantou as músicas dele e partiu antes de ouvir que está muito gorda ou muito magra, que seu cabelo está assim ou assado e tantos impropérios que as mulheres que sobem aos palcos ou aos pódios acabam tendo que ouvir, com importância igual ou maior às suas habilidades artísticas e esportivas.

Fui então pensando nas apresentações musicais que já vi, inventariando as mulheres. Pouquíssimas instrumentistas. Algumas cantoras, mas pouquíssimas instrumentistas. Por quê? Será que não é uma habilidade feminina? Acho pouco provável...

Na saída do show fiz uma entrevista com meu marido, que gosta muito de música e conhece muito de música. Ele não conseguiu me citar mais do que duas grandes instrumentistas (falando de uma música mais "popular", deixando de lado as orquestras, acho que são coisas bem diferentes)... e pareceu não se incomodar com isso! Até insisti um pouco, mas não quis ser (muito) chata e logo a conversa seguiu outro rumo. Mas antes disso conseguimos identificar uma pista: o mundo da música é o mundo da boemia, da noite, ambientes que podem não ser muito confortáveis, nem muito acolhedores para as mulheres...

É só uma pista, só uma das muitas ramificações dessa teia que vai separando as mulheres de sua arte. Teia essa que passa pelos infinitos afazeres domésticos e pelo exaustivo cuidado dos filhos, tarefas que seriam perfeitamente desempenhadas pelos homens, mas, enfim, cá estamos. Teia que vai passando também pelas armadilhas e ilusões da vaidade, dos cremes pra isso, cremes praquilo, cabelos assim ou assado, unhas blábláblá, maquiagens mil, roupas e sapatos XYZ. Enquanto nos perdemos em frente ao espelho os homens já saíram de bermuda e estão jogando bola, tocando violão, andando de skate.

Essa teia que passa também pelos "bons modos", ah os bons modos! Nos iludimos achando que estão caindo por terra, e podem até estar, mas num ritmo tão lento, mas tão lento, que brotam novamente antes que possamos arrancá-los pela raiz!

E sem falar do medo. O medo de se expor, de ser avaliada, de ser rejeitada - não é exclusividade das mulheres, mas parece que nos afeta em graus mais profundos... E o pior, o nosso medo exclusivo, o medo de andar sozinha na rua à noite, o medo de dizer não, o medo de você-sabe-o-que.

A boa notícia - eu preciso de uma pra continuar vivendo - é que essa teia, apesar de longa e emaranhada, não é determinada pela natureza. Essa teia é determinada pela cultura e cultura muda-se. Os traços de natureza que sustentam a teia não passam de pretextos para que a cultura crie desculpas e mecanismos que os transformam em leis determinantes. O fato de gestar, parir e amamentar não determina que a mulher deva se encarregar sozinha dos filhos pelo resto da vida!

Que outras características imutáveis nosso corpo feminino carrega? Como a cultura usa essas características pra nos subjugar, nos amedrontar, nos castrar? Em que colaboramos com isso? Não é "culpa deles". É responsabilidade de cada um/a de nós, reconhecer e recusar essa cultura, criar novas formas de viver, formas mais livres, mais amorosas, mais inclusivas. Formas que façam com que todos ganhem, com que todos se expressem, com que todos Vivam.





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