sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Água e estratégias para tempos de crise

Sabe aquela coisa meio "palestra motivacional" de falar que crise = oportunidade? Goste ou não do ambiente autoajuda, do power point do empresário-bem-sucedido-feliz-e-realizado, dos discursos budistas que tentam te convencer de que o mundo é lindo e perfeito... não tem jeito, admita: é verdade!

Pra facilitar a compreensão vou até colocar meu terninho, fazer uma escova no cabelo, usar uma maquiagem discreta e montar um infográfico:

CRISE = necessidade de mudança
opção 1: não muda === fim do jogo, morreu, acabou, sorry
opção 2: muda pro primeiro lugar que aparece === ou você é um tremendo de um sortudo (não acredito em sorte...) ou a crise vai voltar...
opção 3: quer mudar, mas... pra onde???
??? = necessidade de reflexão
opção 1: não reflete, não muda, volte à casa anterior
opção 2: reflete, visualiza OPORTUNIDADES, muda! Muda com consciência
fim da crise
c.q.d.

Aí falam que a ÁGUA, símbolo da vida, possibilitadora da vida, elemento que compõe nossos corpos e nosso planeta, está em crise.

Quem encara a crise corre buscar baldes e bacias. Quem não encara continua lavando calçada. E carro.

Mas dentre aqueles que encaram a crise perceba que existem dois caminhos: o da "opção 2", que vai logo pro primeiro abrigo que encontra, e acha que está tudo resolvido. E o caminho da "opção 3", que analisa com mais cautela, que aprofunda e amplia as margens da crise. Adivinha por qual caminho foi quem saiu correndo buscar baldes e bacias?

Eu sei, eu fui. Mas não demorou muito, embora já estivesse com os braços cansados e água respingada por toda a casa, para que tropeçasse na célebre pergunta: PRA QUE você está fazendo isso?!

Em primeiro lugar: o racionamento de água em nível doméstico é uma piada. Uma piada de muito mal gosto, mas uma piada. Então quer dizer que "eles" desperdiçam 30% da água TRATADA e eu tenho que tomar banho na bacia?! Então quer dizer que indústrias e agropecuária continuam como sempre estiveram e EU tenho que atrasar meu almoço pra ficar procurando plantinha pra regar com a água que sobra na pia?! Então quer dizer que a vizinha que lava carro e calçada continua lavando carro e calçada enquanto EU fico com a casa parecendo um abrigo de refugiados, cheia de balde com água malcheirosa pra usar sabe-se lá quando?!

Então quer dizer que "eles" f*dem com tudo fazendo uma gestão porca e EU tenho que deixar de lavar meu carro e minha calçada?! (ok, nem tenho calçada e não ligo pra carro lavado mesmo, mas, enfim...).

O fato é que, racione água ou não, quando o bicho pega não interessa quem poupou e quem esbanjou. Se tem corte de água no seu bairro não adianta dizer "mas olha, eu tomei banho em bacia o mês todo!".

E aí? Vai continuar usando a água como sempre usou?

Da mesma forma que fico com dó de quem está economizando gotinhas e se achando herói, fico com asco de quem fala que "o que precisa é acabar com essa corrupção que domina o país", mas continua agindo da mesma forma.

Voltando ao nosso Flip Chart lá do começo, quem fica no blábláblá de achar que "a culpa é dos políticos", não está encarando a crise. E não venha me falar que faz a sua parte divulgando manifestações pró-impeachment. Também não dá pra achar que "votando com consciência" a lição de casa está feita e entregue. Desafio qualquer um que tenha esse discurso a me apresentar ações reais e palpáveis que esteja fazendo pra me provar que não está apenas no blábláblá.

Por outro lado, quem simplesmente economiza e raciona água em nível doméstico, de forma amadora, com baldes, bacias e até tambores de 200 litros, está naquele caminho de achar que está encarando a crise, comprando a primeira passagem-pra-não-sei-onde que lhe vendem.

Se você está em alguma dessas situações que citei, quero te convidar pra vir pelo outro caminho, o caminho do "quero mudar, mas... PRA ONDE???".

Vou esboçar agora algumas das minhas reflexões sobre o tema. Não as confunda com o caminho em si. O caminho é a dúvida, o caminho são as interrogações e exclamações. O que surgir delas é bem vindo, ajuda a continuar o caminho, à medida que gera mais interrogações e exclamações, mas não representa "a salvação". Não desviemos do caminho!

Pois bem, pros que racionam água em nível doméstico: vamos nos profissionalizar! Vamos racionar água sim, mas PRA NÓS, não pra "eles". Vamos instalar sistemas de captação da água da chuva, vamos fazer cisternas, vamos ter caixas d´água com tamanhos de gente grande. Aí sim justifica tomar banho na bacia. Ou você pode até se surpreender com o volume de água captado e se esbaldar numa chuveirada loooooonga (verão = chove mais = tomamos mais banhos; inverno = chove menos = tomamos menos banhos, ou banhos menores).

Vamos nos apropriar da água, vamos conhecer a água, vamos conhecer as chuvas, Todo mundo tira sarro da criança da cidade que acha que o leite vem da caixinha. E você, que acha que a água vem da torneira?! Ah, não, agora você sabe que a água vem do Sistema Cantareira e que ele está criticamente seco, então você precisa racionar água. Está na hora de conhecer a vaca... e cuidar da vaca... mas não venha me falar, pelamordedeus, que "a culpa da falta de água é o desmatamento da Amazônia". Pode até ser, mas papagaiar isso não ajuda em nada! Antes de falar mal do quintal do vizinho, que tal cuidar do nosso?

Em todo caso, ter um mínimo de autonomia com relação à água é questão de sobrevivência. Ponto.

E conhecendo e gerindo a própria água é inevitável que você queira economizá-la. Aí se você tem tempo (e saco) de ficar manejando baldes e bacias, ok, mas o investimento financeiro pra fazer instalações decentes pra reuso de água pode começar a fazer parte do planejamento do seu orçamento doméstico...

Custa dinheiro, sei que custa. Mas o uso do dinheiro é questão de estabelecer prioridades. Vai priorizar a água, ou vai continuar esperando que "eles" façam alguma coisa?!

E não pense que para por aí. Até agora falei de ações práticas, litros, metros cúbicos, reais e centavos, mas tem a necessidade de repensar a nossa relação com a água. Precisamos nos conectar com a essência divina da água (se você acredita em Deus, deuses e cia imagino que não seja difícil; se você é um cético ou ateu, basta pensar que a água é a geradora da vida, a possibilitadora da vida. Isso não é misticismo, é fato). Pois bem, como você tem se relacionado com a Água?

Com que reverência você toma seu banho? Banho pra mim é sagrado. E não toque no meu banho! (até tentei tomar banho em bacia, mas me senti extremamente mal e continuo tomando meu banho como sempre tomei: sem pressa e sem preocupações. Eu PRECISO disso). No banho me limpo e me perfumo e pratico uma imensa gratidão para com a Água. É lindo.

Por outro lado, qual o sentimento de fazer xixi e cocô na água? Simbolicamente é um paradoxo. O cúmulo do excremento no cúmulo da divindade (água e sol pra mim ocupam o cúmulo da divindade). Vou te deixar com esse abacaxi na mão...

Então começamos a prestar atenção em todos os momentos que a Água está presente em nossa vida. Limpeza, limpeza, limpeza... que tal chamar de purificação? Serve também pro banho! Roupa, chão, utensílios... passo a usar a água com reverência, com gratidão, com consciência, ora economizando gotas, ora esbanjando baldadas generosas no chão da varanda, tranquilamente, pois aquela água está sendo usada pela segunda ou terceira vez, honrando sua nobreza. Pra certos rituais de purificação basta uma borrifada, mas pra outros precisa de baldadas mesmo...

Deu sede, bebo Água. Fresca, do filtro de barro. Existe maior sensação de prazer do que banhar a boca sedenta com uma água fresca?!

Deu fome, vou cozinhar. Mais Água, Água, Água. Mais gratidão, mais reverência, mais consciência.

Seguimos caminhando. E parando pra beber Água. E parando pra tomar banho. E quando chegarmos poderemos lavar as roupas e a casa, que estarão bastante empoeiradas, as primeiras, da estrada um tanto quanto árida, a segunda, pela longa espera...